#RLL - Três autos: Barca do Inferno, do Purgatório e da Glória

>> sexta-feira, 1 de julho de 2011

"Ora assim me salve Deus/
e me livre do Brasil" 
(GIL VICENTE, 1942, p. 39)

A Resenha Literária Livre de hoje, e última da semana, é três em uma: falaremos de três autos de Gil Vicente.

#rll - Auto da Barca do Inferno, Auto da Barca do Purgatório e Auto da Barca da Glória
Disciplina: Literatura Comparada - literatura e morte
Autor: Gil Vicente (português, mas que também escreveu em castelhano)
Anos: séc XVI: 1517, 1518 e 1519, respectivamente.

Já tivemos epopeia, ou poema épico, sátira menipeia, e uma comédia (divina). Hoje, trazemos mais um gênero para nossas discussões literárias: o auto. Gênero típico da Espanha e de Portugual medievais, o auto tinha quase sempre cunho religioso e moralista, e era encenado nas igrejas durantes festas e solenidades. Apesar de ser concebido para a encenação, o auto tem grande valor literário e encontra em Gil Vicente, considerado o maior dramaturgo português, um de seus grandes expoentes. O autor português toma emprestadas muitas alegorias e imagens da Divina Comédia do italiano Dante (a começar pela tríplice divisão dos lugares pros quais podemos ir depois da morte). 

Gil Vicente, "entendido" 
de Teatro. 
Um dos mais famosos autos de Gil Vicente (volta e meia cobrado em vestibulares e sempre presente nos livros didáticos de literatura) é o Auto da Barca do Inferno. Ele é o primeiro (também mais divertido e agitado) de uma trilogia, e não foi encenado dentro de igrejas, mas em palcos exteriores - as "câmaras" (afinal a igreja não poderia ser palco do próprio inferno!). A estrutura dos três é a mesma: as almas chegam até onde estão os barqueiros - o diabo na barca do inferno e um anjo na barca da glória - e tentam conseguir um lugar (sempre na barca da glória, claro!). Em uma espécie de Juízo final particularizado (característica já da Renascença em uma Idade Média Tardia), os barqueiros acusam as almas pelos pecados que cometeram em vida, ou exaltam suas virtudes, e assim decidem em qual barca cada uma poderá embarcar. 

Na Barca do Inferno vão os piores "tipos" da sociedade portuguesa: os que não são pobres nem nobres, (um esboço da futura burguesia): o fidalgo orgulhoso; o onzeneiro (usurário), simbolizando a avareza e ambição; o sapateiro - aquele que sabe da vida de todos, que rouba nos preços dos serviços, representa os artesãos e bisbilhoteiros (já pode assustar a sua tia velha que não cuida da vida dela); o frade, que apesar do ordenamento religioso é fornicador e adúltero; a mulher do padre (!); Brívida Vaz, a alcoviteira, que facilita e é cúmplice dos pecados (fornicação, adultério, prostituição); o ladrão; o juiz corrupto e seu adulador que acha que ainda vale alguma coisa ser diplomado (mesmo estando morto!).

Na Barca do Purgatório vão os pobres - trabalhadores - que cometeram pequenos pecados (resultado da sua pobreza, muitas vezes) e que ganham (?) a chance de sofrer mais um pouco no Purgatório para alcançar o Paraíso.


No auto da Barca da Glória, são representados os nobres da sociedade portuguesa: reis, imperadores, membros do clero, que, por seus (muitos) pecados, quase vão para o Inferno, mas, no último minuto, são salvos pelo próprio Cristo ressuscitado (afinal são eles que estão ali assistindo e pagando a peça). Assim, o autor consegue fazer sua crítica social sem irritar os poderosos da corte portuguesa.

Mesclando elementos da cultura popular e da cultura erudita, Gil Vicente escreveu autos divertidos e extremamente críticos e moralistas, que serviam de distração para os nobres e educação religiosa para o povo, e resistiu ao tempo como um documento de uma sociedade no limiar de duas mentalidades: a medieval e a da Modernidade. 
(Por falar em "resistir" ao tempo, a edição que eu peguei na BCE é a própria portuguesa de 1942. Pra escrever esse post fui re-contaminada por ácaros portugueses de quase 70 anos!)

Com muita ironia e cinismo, o riso está sempre presente na obra: anjos e o diabo debocham dos pecadores que estavam crentes que iriam para o Paraíso. Pra quem gosta de teatro, ler pelo menos esses três autos é fundamental (ainda mais porque no Brasil os autos ganharam um novo fôlego com a chegada dos padres jesuítas que os utilizavam na catequese dos índios, permanecendo através dos séculos na cultura popular, especialmente na nordestina, até chegar ao famosíssimo e global Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna). Pra quem não curte teatro, vale a pena a leitura pelo texto divertido e muito dinâmico.

 Semana que vem as #rll voltam com Rabelais, Shakespeare, Cervantes e Dostoiévski. Aguardem!

1 comentários:

SSMartinelli 3 de julho de 2011 às 18:54  

Parabéns pelo blog, adorei! ;)

http://poesiapensamento.blogspot.com/

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