Populares Anônimos

>> quarta-feira, 31 de agosto de 2011

 "Bem vindos ao PopA", dizia a placa. Era sua primeira reunião. Estava de passagem e resolveu entrar (na verdade o grupo já havia sido "fortemente" recomendado por muitos conhecidos seus). Nunca lhes dera ouvidos, mas nesse dia resolveu entrar.

Entrou. Ainda, nenhuma das pessoas havia sentado nas cadeiras dispostas em forma de um grande círculo. A maioria delas estava num burburinho guloso em volta de uma mesa que parecia ter café e umas bolachinhas. Sem conhecer ninguém, aproximou-se da mesa e disse (a todos em geral e a ninguém em particular): 
- Ainda bem que a sigla ficou PopA, hein? Já pensou no tanto de loiras e o tanto de trintonas desavisadas que apareceriam aqui se fosse P.A.?

Ninguém riu. Mas não se deu por vencida, insistiu no chiste:

- Vocês entenderam, né? P.A. podia ser tanto Pensão Alimentícia quanto Pa..."rceiro" Amigo! Isso aqui ia viver cheio de mulher, por uma razão ou por outra!

Após novo silêncio, mais constrangedor que o primeiro, deu-se por derrotada. Encheu um copinho com o café amargo que estava sendo servido, ensaiou um sorriso sem graça, passou uma das mãos nos longos cabelos que em parte lhe cobriam o rosto e sentou-se. "Gente esquisita do caramba! Era uma ótima piada!" Decidiu não dizer mais nada até que a reunião começasse.

Em silêncio, retirou da bolsa o folheto que uma jovem lhe entregara na entrada do PopA:

Os dez mandamentos do Popular Anônimo

I - Não contarás "casos engraçados" da sua vida;
II - Não terás mais de dois perfis nas redes sociais e em cada perfil não mais que 100 amigos;
III - Seus amigos íntimos serão menos de 10 e não terás conhecidos;
IV - Manterás o amigo, perderás a piada;
V - Não farás favores, nem pedirás favores;
VI - Não sorrirás sem motivo, ou só para ser simpático;
VII - Não puxarás conversa;
VIII - Não darás grandes festas;
IX - Não se destacarás em grupos de dança, teatro, esportes, igreja, ou em qualquer outro grupo (inclusive no PopA)
X - Não chamarás propositalmente a atenção para si mesmo por meio de tom de fala, trejeitos, caretas, vestimenta ou qualquer outro traço de sua personalidade.



Leu o folheto e teve medo de que aquilo não fosse uma brincadeira. "Se não for uma brincadeira - pensou, eu estou beeem longe de alcançar a santidade pedida por esse bando de maluco! Opa, acho que acabo de infringir uns cinco mandamentos em pensamento...."

[continua]



Read more...

sobre aproveitar a vida

>> domingo, 28 de agosto de 2011

Olá, queridos quatro leitores desse blog! Terminei as resenhas de uma das disciplinas do mestrado, sobre literatura e morte, e ainda falta fazer as resenhas dos livros da disciplina sobre memória, mas elas podem demorar um pouquinho porque o novo semestre da UnB já começou e promete ser mais punk do que o primeiro... então, um dia elas aparecem aqui no blog, só não sei quando. Enquanto elas não chegam, leiam os livros indicados :)

***

Cuidado! O texto abaixo pode conter um alto teor de autoajuda, senso-comum, redundâncias e obviedades! Mas se você tem twitter ou facebook, você já está acostumado com isso, então, aproveite a leitura.

***

Desde que eu me entendo por gente já ouvi falar muito sobre aproveitar a vida, sobre viver a vida. "Bruna, deixa de ser nerd, para de ler, vai aproveitar a vida! Vai sair, vai namorar, vai dançar, vai aproveitar a vida! Bruna, pra que fazer faculdade agora? Vai aproveitar a vida! Bruna, pra que fazer mestrado agora? pra que namorar sério agora? pra que ser concursada agora? Pra que ser religiosa agora? Você é jovem, vai aproveitar a vida!" Ou então: "É, Bruna, você tá certa, faça alguns sacrifícios agora, e depois você vai ter tempo e dinheiro pra aproveitar a vida. Invista tudo agora que você é jovem, e mais tarde você vai poder aproveitar."

Aposto que vocês já devem ter ouvido esses dois tipo de "conselheiros" (ou intrometidos mesmo) muitas e muitas vezes. Acredito que escolher um lado ou outro é irrelevante se não tivermos claro o que o conceito de "aproveitar a vida" representa pra gente. Pra você, o que é aproveitar?

Luisa tem 17 anos. Acredita ter os melhores amigos no mundo. Recentemente declarou para os pais que queria ser "independente": queria sair sem ter hora pra voltar, com quem quisesse, pra onde quisesse, afinal, até esse momento ela nunca dera trabalho pros pais - tirava as melhores notas, andava nas melhores companhias e não era a pior das filhas, preguiçosa e desobediente às vezes, mas nada que embranquecesse os cabelos dos pais - e decidira que agora era tempo de colher as recompensas por tantos anos de "boa filhice" e finalmente aproveitar a vida. Os pais, é claro, disseram um redondo e sonoro Não para Luisa. O que não a impediu de se jogar no que ela considerava ser seu novo estilo de vida: um estilo em que aproveitava a vida! Luisa agora sai pra balada, do techno ao axé, da rave à micareta, do sertanejo ao pagode, e deixou seu pop rock pra lá. Luisa, que sempre foi tímida, agora dança, beija, pergunta, fala alto e ri, sai de casa sem ter hora pra voltar, mata aula pra beber vinho na casa das amigas, brinca de verdade ou consequência, experimenta seu primeiro cigarro, responde os professores - porque decidiu que seria livre pra "falar na cara" tudo o que bem entendesse. Luisa agora é popular, é consultada e ouvida pelas amigas, conquista, beija e se diverte com meninos bonitos quando bem entende e prova pro ex que não precisa mais dele, é "brother" dos professores mais moderninhos que gostam do seu jeito irreverente, e, depois de brigas e mais brigas, os pais e os irmãos desistiram dela - ou a "deixaram em paz", como ela gosta de pensar. Luisa é livre, Luisa está aproveitando a vida. 

Marcela tem 23 anos e acabou de se formar. Namorou durante toda a graduação, não foi a nenhum dos famosos churrascos com fama de bacanais da Universidade, não teve encontros furtivos e secretos com nenhum professor. Marcela já trabalha mas ainda mora com os pais, aos quais entende que deve respeito, satisfações e justificativas. No pouco tempo livre que tem entre o trabalho e o convívio com o namorado e a família, Marcela vai à igreja e estuda para conseguir um emprego melhor. Não vai a festas, não bebe, não tem amigas solteiras, e só faz sexo com o namorado quando ele insiste muito e consegue driblar as suas defesas morais. Não se sente infeliz, no entanto. Marcela tem plena consciência de que alguns sacrifícios devem ser feitos agora para que ela possa colher bons frutos no futuro - sair da casa dos pais casada, e aproveitar um ou dois anos de vida a dois com o futuro marido e atual namorado, antes de realizar seu sonho de ser mãe. E esse "aproveitar" do futuro não diverge muito do presente: é só uma espécie de "upgrade": um pouco mais de dinheiro, um pouco mais de sexo, um pouco mais de tempo, um pouco mais da vida, é tudo o que ela quer. Está tudo planejado e Marcela não duvida nem por um instante do futuro que escolheu pra si mesma. Marcela é livre e está construindo uma vida bem vivida.

Eu sei que ao longo da sua vida você já teve seus momentos de Luisa e os de Marcela, ou que você aprova o estilo de uma e despreza a conduta da outra. Mas Luisa e Marcela são personagens, maus personagens, estereotipados, unidimensionais e previsíveis. Pessoas não são assim - pelo menos não deveriam ser. Nós duvidamos, experimentamos, mudamos, crescemos. E um ponto chave nesse crescimento é saber o que é aproveitar, o que é "carpe diem", "seize the day", o que é "viver intensamente", o que é "viver a vida". Saber se devemos viver assim ou não é secundário. 

Alguns leitores acharão que Luisa não está perdendo tempo: aproveitar a vida é mesmo sair pra balada, tomar uns porres, participar de umas orgias, pegar sem se apegar, dia após dia, após dia. Aproveitar é tirar o máximo de prazer das coisas. Viver bem é viver prazerosamente. 

Outros estarão ao lado de Marcela: é preciso ter comedimento, é preciso pensar no futuro, é preciso sacrificar o presente em favor do amanhã, mesmo que esse presente seja apagadinho, sem grandes emoções - até melhor que seja assim, pra deixar a gente mais "pé no chão".

Eu já estive dos dois lados, tenho um pouco de Luisa e de Marcela. Nenhuma das duas me agrada, nenhuma das duas realiza o meu conceito de aproveitar a vida. Luisa está mentindo pra si mesma, acha que está aproveitando a vida porque os outros acham isso também. É um prazer que vem de fora, que é artificial. Marcela tem medo de arriscar, medo de sair da sua zona de segurança, de sair do contexto em que está tudo certo e planejado, e seu prazer vem de uma falsa ideia de controle sobre seu destino.

Não importa realmente o modo que as duas escolheram para aproveitar a vida e, sim, as razões que as fizeram escolher esse modo. Pra mim, as duas são razões erradas. Aproveitar a vida, pra mim, hoje, é experimentar, é ter coragem de conhecer o que está além de mim, inclusive além do meu prazer e além do meu controle. É saber que, sim, eu sou vulnerável, e por mais independente, cuidadosa ou forte que eu seja, por mais coisas que eu tenha conquistado e feito - sou mortal, ou melhor, sou "morrível". E em face à morte, muitas das grandes realizações que eu julguei ter feito tornam-se insignificantes. Então, sempre penso que viver em função do futuro não vale a pena. Eu não faria nada do que faço - namorar, trabalhar, estudar, ser religiosa - se não sentisse nenhum prazer nisso. Se faço isso tudo é porque gosto. É porque tenho prazer em me sentir útil trabalhando, tenho prazer em estudar literatura e compreender um pouco mais o mundo e a mim mesma, tenho prazer em dividir minha vida com uma - e só uma - pessoa, tenho prazer em buscar a Deus. É claro que não sinto prazer nisso o tempo todo. Mas a infelicidade, a angústia e a dúvida são parte do viver. A ideia de que aproveitar a vida é evitar a dor, de que sofrer é desperdício de tempo é falsa, enganosa, é até cruel, porque cria pessoas angustiadas e covardes que vivem uma imitação de vida.

Por outro lado, não descarto a ideia de que um dia, no futuro, se eu estiver viva até lá, essas coisas -  trabalhar, estudar, namorar, ser religiosa - podem não me dar mais prazer ou nenhum tipo de satisfação, por um tempo que seja superior ao de uma "crise". E aí, eu espero ter a coragem de lutar contra a acomodação e mudar outra vez, experimentar de novo, tentar o desconhecido.

Liberdade também é isso: poder escolher ao que você vai se prender. Viver a vida é isso: é ter coragem de tentar o novo, coragem de permanecer o mesmo, coragem quando a vida te pede coragem.

Read more...

#RLL - Memórias póstumas de Brás Cubas

>> quinta-feira, 11 de agosto de 2011

#rll - Memórias póstumas de Brás Cubas
Disciplina: Literatura comparada: literatura e morte
Autor: Machado de Assis, brasileiro.
Ano: séc. XIX, publicado como folhetim entre março e dezembro de 1880 e como um livro só em 81.



AO VERME
QUE
PRIMEIRO ROEU AS FRIAS CARNES
DO MEU CADÁVER
DEDICO
COMO SAUDOSA LEMBRANÇA
ESTAS
MEMÓRIAS PÓSTUMAS




Eu comecei a ler Memórias póstumas quando eu tinha uns treze anos, várias vezes. Larguei esse diacho desse livro chato que parecia nunca começar e só consegui ler de verdade com uns 16, 17. De lá pra cá devo ter relido algumas vezes, reli pra monografia e agora pra disciplina. E eu não consigo entender como esse livro é trauma de Ensino Médio da maioria dos coleguinhas. Bom, se você é um desses traumatizados, fica a dica: pule os primeiros, sei lá, onze capítulos. E divirta-se com a ironia desse defunto debochado que volta do além - sabe-se lá como - pra contar a história da sua vida, história que teve como fato mais importante a sua morte, como afirma o Prof. Augusto, professor dessa disciplina que escreveu sua tese de doutorado sobre morte e decomposição biográfica em Memórias póstumas.







Aqui, abro um parêntese nas resenhas pra fazer um comentário sobre "recepção". Eu tenho visto muitos coleguinhas, dos mais variados níveis de escolaridade, que acham que Machado de Assis foi o único escritor brasileiro ever. Então, pra todo livro que eu leio eu escuto a pergunta: "É daquele cara, como é mesmo o nome? Machado de Assis?"



Machadão
Não, gente. O Joaquim Maria (m. de a.) não foi o único escritor brasileiro ever. Foi, talvez, o mais importante e o mais estudado, mas não o único. É dele a espécie de "trilogia" - Memórias Póstumas de Brás Cubas (uma ideia fixa!) Quincas Borba (ao vencedor, as batatas!) e Dom Casmurro (Capitu traiu ou não traiu?). Se você não entendeu nenhuma das referências entre parênteses, nossa amizade está em risco. Porque ter lido esses livros não é questão de ter acesso (você os encontra de graça nas bibliotecas ou por cinco reais em edições descartáveis) ou tempo (os livros tem milhões de capítulos! dá pra ler um por dia na vida!), mas de falta de interesse mesmo, pura preguiça. (professorinha de português indignada mode off).

Voltando ao Memórias póstumas, Brás Cubas (único autor-defunto da literatura universal, ao que parece) insere o Brasil nessa tradição ocidental dos diálogos dos mortos. Com a liberdade da palavra - pois agora tanto faz o que vão pensar, ele já morreu mesmo! - Brás Cubas se junta à categoria dos "desajustados" socialmente que podem falar o que "der na telha" - os loucos, as crianças, os bobos ou estúpidos, os velhos. Deixo dois trechinhos pra vocês que eu usei na minha monografia na comparação com Incidente em Antares (mas vale muito a pena ler o livro todo! você pode baixar aqui): 
Amável Formalidade, tu és, sim, o bordão da vida, o bálsamo dos corações, a medianeira entre os homens, o vínculo da terra e do céu; tu enxugas as lágrimas de um pai, tu captas a indulgência de um Profeta; e se a dor adormece, se a consciência se acomoda, a quem, senão a ti, devem esse imenso beneficio? A estima que passa de chapéu na cabeça não diz nada à alma; mas a indiferença que corteja deixa-lhe uma deleitosa impressão.
Explicar ironia é sempre constrangedor, mas, bem, vou fazer isso só dessa vez: Brás Cubas tá sambando na cara da high, dizendo que tanto faz quais são os verdadeiros sentimentos e motivações dos atos humanos, desde que eles estejam dentro do protocolo social, de acordo com o espetáculo e a encenação da vida, desde que eles se apresentem com uma cortesia e tirem o chapéu. (Eu sei que na sua timeline todos os dias as pessoas dão RT em frases que querem dizer quase a mesma coisa, mas, veja bem, Machado disse isso com muito mais classe já em 1880!)

O segundo trecho, enfim, explica tudo isso que eu venho tentando falar sobre morte e liberdade, só que, claro, com muito mais classe:
Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a catar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; [...] Mas, na morte, que diferença! que desabafo! que liberdade! Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lantejoulas, despregar-se, despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! Porque, em suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem estranhos, não há platéia. O olhar da opinião, esse olhar agudo e judicial, perde a virtude, logo que pisamos o território da morte; não digo que ele se não estenda para cá, e nos não examine e julgue; mas a nós é que não se nos dá do exame nem do julgamento. Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados. 
A morte é o único jeito de romper com a formalidade e dizer a verdade. Ou a loucura. Ou a velhice. De qualquer forma, aquele que escolhe dizer essas verdade é sempre um desajustado social, alguém que não está legitimado pelo sistema. E Machado alia morte à ironia, a um humor fino, sarcástico, debochado, e até perverso (talvez com ele eu tenha aprendido a ser um pouquinho malvada).

Maas, (e aí é que entra a coisa mágica da literatura), quem diz tudo o que Brás Cubas diz é Machado. Maaas, Machado não estava morto, nem louco, nem velho. Era, ao contrário, um respeitável jornalista, crítico de teatro, um notável escritor. Como ele pode, então, dizer todas essas coisas (jogar na cara da sociedade toda a sua podridão e falsidade) e continuar sendo bem aceito e querido?
Ora, porque é literatura! É ficção! É de mentirinha... "Não é da gente que ele tá falando", eles pensaram.
E era. A literatura dá a ver o que a realidade esconde. Escrever literatura é discutir política, história, filosofia, religião, enfim, discutir a cultura que forma o homem, ao mesmo tempo que é formada por ele. E de um jeito divertido! (literatura é entretenimento!)

Mas chega de ficar fazendo propaganda da minha área (ou não). Leia Machado! Leia Machado pra entender o brasil e o mundo do fim do séc. XIX, pra entender um pouco sobre política, escravidão, ciúme, inveja, poder, medo, loucura, morte, relacionamentos. Enfim, leia Machado pra ter assunto pra conversar comigo depois :)

Mas, e aí, vai esperar morrer pra dizer o que pensa? Olha que nem todo mundo tem a sorte de Brás Cubas de voltar e continuar falando...

Read more...

#RLL - Bobók

>> quarta-feira, 10 de agosto de 2011

#rll - Bobók
Disciplina: Literatura comparada: literatura e morte.
Autor: Fiódor Dostoiévski, russo.
Ano - séc. XIX, 1873.

A #RLL de hoje é sobre um conto de Dostoiévski, traduzido e analisado por Paulo Bezerra, um dos tradutores fodões do russo pro português.

Eu nunca tinha lido nada do Dostoiévski (fala sério, o cara é russo! russos são malvados!) porque achava que seria muito difícil (e os livros mais curtos tem tipo 400 páginas). Um exemplo de quanta "pompa" o cara tem foi a reação das pessoas nos corredores e no elevador do trabalho ao me verem com um livro dele na mão: "Noooooossa! Dostoiévski!" como quem diz "que nerd você! get a life!". 

O conto desconstruiu toda essa imagem séria e pesada que eu tinha dele. "Dosto" era um fanfarrão! Bobok é considerado uma sátira menipeia da modernidade. Nasceu com a intenção de responder as críticas que o último romance que havia sido publicado por Dostoiévski havia recebido. Em vez de responder "na mesma moeda" com um ensaio ou uma nota no jornal, o autor russo preferiu usar a literatura, criando uma obra que tem significado mesmo que o leitor não saiba que ela foi concebida com esse primeiro propósito.

Lugar de diversão!
Ivan Ivánitch é jornalista, escritor frustrado que vive levemente embriagado. Um dia, resolve se divertir e acaba indo a um enterro. Passeando pelo cemitério acaba sentando em uma lápide aleatória pra descansar e dorme. Acorda ouvindo um som, "bobók" (tipo o som de uma bola de sabão estourando) e começa a ouvir vozes. As vozes vem dos defuntos em torno dele, que estão "recepcionando" o novo morto no cemitério, que ainda não sabe muito bem que morreu. Ivan fica na dele e começa a prestar atenção na conversa dos mortos.  A conversa dos mortos se encaminha para a instituição de uma tanatocracia, com novos valores, diferentes dos dos vivos, onde prevalece a verdade absoluta.
Um trechinho:

[...] Mas por enquanto eu quero que não se minta. É só o que eu quero, porque isto é o essencial. Na Terra é impossível viver e não mentir, pois vida e mentira são sinônimos, mas, com o intuito de rir, aqui não vamos mentir. Aos diabos, ora, pois o túmulo significa alguma coisa! Todos nós vamos contar em voz alta as nossas histórias já sem nos envergonharmos de nada. Serei o primeiro de todos a contar a minha história. Eu, sabei, sou dos sensuais. Lá em cima tudo isso estava preso por cordas podres. Abaixo as cordas, e vivamos esses dois anos na mais desavergonhada verdade! Tiremos a roupa! Dispamos-nos!
Nesse novo diálogo dos mortos, agora temos um vivo escutando, que vai ouvindo a conversa até que um espirro faz com que os defuntos se calem - e ficamos sem saber no que daria essa tal sociedade em que ninguém tivesse vergonha ou escondesse coisa alguma.



Dostoiévski
A morte como forma de liberdade do discurso está presente aqui (estudar morte é estudar liberdade) e estará presente também no último romance dessa disciplina, o romance que fez o professor começar a estudar morte: Memórias póstumas de Brás Cubas. O defunto-autor é o parâmetro de comparação de todas as obras que vimos até aqui, e, como Bobók, foi escrito por um autor na periferia do mundo europeu, no mesmo século XIX, que via a falência do homem prisioneiro de uma vida de fingimentos, aparências e mentira, que só poderia encontrar alguma liberdade na morte - só depois de morto que Brás Cubas pode dizer com sinceridade, com seu desprezo tumular, o que sempre pensou daqueles com quem conviveu. Mas esse é o assunto da próxima resenha. Leiam Dostoiévki. Além de todo mundo achar que vcs são nerds da literatura (a vida é um fingimento), o cara era um gênio.


Read more...

asas e raízes

>> segunda-feira, 8 de agosto de 2011

das páginas do diário dela...

***

Mais uma vez aumentei o volume do som e deixei que a música repetitiva que tocava na rádio abafasse o som desagradável e patético dos meus soluços. Afinal, por que, dessa vez, chorava? Chora por tudo, essa mulher! Acredita que, como na infância, as lágrimas ainda tem o poder de dizer tudo o que oprime a garganta, de aliviar a pressão do peito, a dor que começa na boca do estômago. Não mais. O choro é agora, e sempre o foi, na verdade, sinal de fraqueza, de desequilíbrio, de fracasso. Chorar é regredir à incapacidade de argumentar e de se defender com palavras. É a negação da racionalidade, é a entrega à vertigem do desespero, é a covardia daquele que não sabe o que fazer - ou sabe e tem medo de fazer.

Sabendo de tudo isso, chorei. Ela chorou. A mulher que escreve agora não é a mesma de agora há pouco: esta é das palavras. A outra, das lágrimas.

Ela se debate entre os dois maiores impulsos humanos: criar asas e cultivar raízes. A oposição mais complexa das muitas oposições humanas - peso e leveza - que ela antes havia encontrado na arte e na ciência, reduzia-se, agora, rebaixava-se, agora, ao seu pequeno drama particular.

Ficar ou partir? Manter ou livrar-se?
Sustentaria por mais tempo o peso do passado?
Suportaria por quanto tempo o peso da ausência?
Poderia carregar a contraditória e pesada responsabilidade da liberdade?

Ninguém a quem prestar contas, ninguém para quem justificar-se, a quem responder.
Por outro lado, ninguém para responsabilizar pelo que dá de errado na minha vida (na vida dela?). Ninguém com quem compartilhar méritos, ninguém de quem esperar um elogio, ninguém de quem depender.
Se, de repente, vejo-me livre. Se nada mais me prende e, mesmo assim, não vou a lugar nenhum, preciso conviver com o amargor de descobrir minha covardia.
Mais sufocantes que as prisões externas - relacionamentos, família, amigos, dinheiro, são aquelas que estão dentro de mim: meus valores, meus preconceitos, minha covardia, meu medo. Meu grande e negro medo de voar sozinha, e de e cair e de, ao cair, descobrir que não há nada que me suporte, nada que me prenda!

entre criar asas e manter raízes. entre ficar e fugir - fugir levando meus fantasmas interiores pra onde quer que eu vá! fui condenada a ser eu mesma por toda a minha vida. nunca saberei como é não ser eu. como é estar livre desse corpo e dessa consciência que em nada se parecem com a imagem que eu criei de mim mesma. 

(e aqui dentro relampejou a pergunta: quando foi que eu virei essa megera cínica? quando foi que eu deixei de acreditar no homem? algum dia acreditei?)


No meio desse torvelinho, a mesma gravidade que me puxa pra baixo é a força que me faz subir ao encontrar o solo. e daí essa angústia, a de não saber qual caminho seguir, a de não ter ninguém que me dê a resposta certa, a de ter que assumir o risco de criar minha própria solução.

Não, hoje não é dia da mulher das palavas. as lágrimas rolam e, ao menos por hoje, não haverá força que as impeça de serem livres.

Amanhã é outro dia. E amanhã pode ser que a mulher das palavras encontre uma forma de tocar céu e terra, de alçar voo e ter um local seguro onde possa pousar. De ter a liberdade de escolher quais prisões encerrarão suas asas enquanto ela cultiva raízes.

Read more...

  © Blogger template Simple n' Sweet by Ourblogtemplates.com 2009

Back to TOP