#RLL - Dom Quixote

>> domingo, 31 de julho de 2011

 #rll - O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Macha
Disciplina: Literatura comparada: literatura e morte.
Autor - Miguel de Cervantes Saavedra, espanhol.
Ano: séc XVII, 1605 (parte I) e 1615 (parte II)


Cervantes
De tanto ler romances de cavalaria, nos quais há sempre um nobre cavaleiro que enfrenta gigantes, e monstros em suas andanças em busca de aventura, com o pensamento em uma bela dama que roubou seu coração, Dom Quixote decide ser ele também um digníssimo cavaleiro. Escolhe Sancho Pança como seu fiel escudeiro (todo nobre cavaleiro precisa de um!) e Dulcinéia como sua formosíssima dama. As suas aventuras e peripécias são contadas aos desocupados leitores nos dois volumes de Cervantes, contemporâneo de Shakespeare.

Concebido como uma paródia dos romances de Cavalaria, Dom Quixote entrou pra história da literatura universal como o precursor do romance moderno e como uma das mais completas, complexas e bonitas obras de arte já produzidas pelo gênio humano. É o livro mais editado e traduzido depois da Bíblia. Apesar de todo esse "peso" acadêmico, ele pode e deve ser lido prazerosamente como um livro popular, engraçado e divertido (afinal, não podemos esquecer que literatura é, também, entretenimento!)

Ainda não terminei de ler a segunda parte do Quixote (confessei!) mas já passei por uma das passagens mais famosas da literatura universal, e que tem sido vista como emblemática para a análise de todo o romance. Compartilho com vocês:

Capítulo VIII, Parte I.



DO BOM SUCESSO QUE TEVE O VALOROSO DOM QUIXOTE NA ESPANTOSA E NUNCA IMAGINADA AVENTURA DOS MOINHOS DE VENTO, COMO OUTROS SUCESSOS DIGNOS DE FELIZ RECORDAÇÃO

Nisto descobriram trinta ou quarenta moinhos de vento que há naquele campo; e logo que Dom Quixote os viu, disse ao seu escudeiro:
- A aventura vai guiando as nossas coisas melhor do que poderíamos desejar, porque ali vês, amigo Sancho Pança, trinta desaforados gigantes, ou pouco mais, a quem penso combater e tirar-lhes, a todos, as vidas,  e com cujos despojos começaremos a enriquecer; será bom combate e grande serviço prestado a Deus o de extirpar tão má semente da face da terra.
- Que gigantes? - disse Sancho Pança.
- Aqueles que ali vês, com grandes braços - respondeu-lhe o amo; - alguns há que os têm de quase duas léguas.
- Saiba vossa mercê - observou Sancho - que aqueles que assim se parecem não são gigantes, mas moinhos de vento; e o que neles parecem braços são as asas que, impelidas pelo vento, fazem girar a pedra do moinho.
- Bem se percebe - respondeu Dom Quixote - que não és versado nesse assunto de aventuras; aqueles ali são gigantes; se tens medo, afasta-te e põe-te a orar, enquanto me defronto com eles em fera e desigual batalha.
Dizendo isso, esporeou seu cavalo Rocinante, sem atender aos gritos do escudeiro, avisando-lhe que não se tratava de gigantes, mas de moinhos de vento, sem dúvida alguma, os que ia atacar. Mas ele estava tão convencido de que eram gigantes, que não ouvia os brados do escudeiro Sancho, nem conseguia perceber, mesmo de bem perto, o que eram realmente; antes, ia dizendo em alta voz:
- Não fujais, cobardes e vis criaturas, que estais acometidas por um cavaleiro apenas.
Soprou, neste instante, um pouco de vento, e as grandes asas principiaram a mover-se. Vendo aquilo, disse Dom Quixote:
- Ainda que movais mais braços que os do gigante Briaréu, haveis de pagar-me.
Isso dizendo, encomendou-se de todo o coração a sua senhora Dulcineia, pedindo que-lhe que o socorresse em tal transe; e bem protegido pelo escudo, com a lança em riste, arremeteu a todo galope de Rocinante, e investiu contra o primeiro moinho que se lhe deparou; e cravando-lhe a lança na asa, girou-a o vento com tanta fúria, que se partiu a arma em pedaços, arrastando após si cavalo e cavaleiro; o qual, todo machucado, foi rolando pelo campo. Acudiu-lhe Sancho Pança, pondo o asno a correr o mais que podia, e, ao acercar-se do amo, viu que não podia mover-se, tal foi o golpe que sofreu com o Rocinante. 
- Valha-me Deus! - disse Sancho. Não disse a Vossa Mercê que visse bem o que fazia, que não eram senão moinhos de vento, e não o podia ignorar senão quem levasse outros tantos na cabeça?
- Cala-te, amigo Sancho - respondeu Dom Quixote; - que as coisas da guerra, mais do que as outras, estão sujeitas a contínua mudança; tanto mais que penso, essa é a verdade, que aquele sábio Fristão, que me roubou o aposento e os livros, transformou esses gigantes em moinhos para me privar da glória de vencê-los; tal a inimizade que me tem; mas, ao final das contas, hão de poder pouco as suas más artes contra a bondade da minha espada.
Há entre nós os Quixotes que recusam-se a conviver com a simplicidade de moinhos de vento e preferem levar a vida em peripécias com gigantes, e Sanchos que não se permitem colorir a realidade monótona de moinhos com as cores de gigantes imaginários. Quatro séculos depois, razão x emoção (nx0feelings), realidade x imaginação, reacionalismo x idealismo são ainda as relações mais complexas do homem moderno, estando ora em posição diametralmente oposta, ora relacionadas complementarmente. Daí a universalidade e a permanência dessa história na História. Daí a fascinação que as peripécias de Dom Quixote e seu fiel escudeiro Sancho Pança ainda causam em nós, desocupados leitores. 

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#RLL - Hamlet

>> quarta-feira, 13 de julho de 2011


Há algo de podre no reino da Dinamarca!
Marcelo, em Hamlet
(SHAKESPEARE,  2001, p.  31)

#rll - Hamlet
Disciplina: Literatura comparada: literatura e morte
Autor: William Shakespeare, inglês.
Ano: séc XVII, entre 1.601 e 1.602

William Shakespeare
Eis que entramos no séc XVII, só quatrocentos anos nos separam do maior dramaturgo e um dos maiores poetas de todos os tempos: William Shakespeare. Hamlet é a peça mais interpretada e estudada do mundo. E aqui eu falo dela mais com a emoção de leitora do que como estudiosa da literatura.
A sua história não foi inventada pelo poeta de inglês: o mito do príncipe da Dinamarca que vinga a morte de seu pai é muito antigo na lenda escandinava, e tem outras versões anteriores a Shakespeare.

Os diálogos da peça discutem temas éticos e complicados como traição, suicídio, vingança, loucura, morte. Daí vêm as análises inesgotáveis de um texto que sempre se renova, a cada nova leitura. Eu conheci o Príncipe da Dinamarca com 16 anos, li por curiosidade, e agora li de novo pra disciplina: uma leitura completamente diferente!

Como é uma tragédia (uma tragédia moderna, que traz alguns elementos diferentes da tragédia grega, por exemplo), é de se esperar que todo mundo morra. E isso não é spoiler, todo mundo morre mesmo! Se você não conhece, pode ver resumo da história, mas vale muito, muito, muito a pena ler (sim, eu adoro uma tragédia!). Mas, até cair o pano do último ato, ficamos nos perguntando: O Fantasma realmente existe? Cláudio matou o irmão? Ofélia ama Hamlet? Hamlet está louco de verdade? Gertrudes (Rainha da Dinamarca) traiu o marido? Hamlet é a tragédia da dúvida, da hesitação, do sonho, da loucura, do dilema. São muitos os segredos, as traições e as reviravoltas, o que fez com que essa peça seja encenada até nossos dias e que sirva tanto como entretenimento (Shakespeare foi muito popular no seu tempo) quanto como um texto denso, estudado, interpretado, esmiuçado pelo meio acadêmico.

Um dia hei de ver Hamlet by
Wagner Moura!
Nem preciso falar sobre a relação da peça com a minha disciplina: o drama começa no castelo e termina no cemitério, um fantasma move todas as discussões e motiva todas as (muitas) mortes seguintes, Hamlet contracena com a caveira do bobo da corte e os coveiros têm uma cena inteira só pra eles. (sim, a morte está em todo lugar!)

Ainda sobre Shakespeare, indico 5 peças que simplesmente *têm* que ser lidas: Macbeth, Hamlet, Romeu e Julieta, Rei Lear e Otelo, o mouro de Veneza.

E, pra você não ter como fugir, recomendo muito o ótimo (texto ótimo, atores ótimos, direção ótima de Fernando Meirelles, lindo demais!) seriado global de doze episódios Som & Fúria, que tem o título baseado em uma das falas mais famosas de Lady Macbeth: "A vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, nada significando."

Vou encerrar o post com o monólogo mais famoso do teatro universal. Esse texto persiste no nosso imaginário porque faz a pergunta mais fundamental de todos nossos momentos de crise: ser ou não ser, existir ou não existir, viver ou não viver? Quando tudo parece perdido, quando nada faz sentido, a gente se pergunta: por que continuar? por que continuar vivendo uma vida miserável? Por puro e simples medo da morte? O que é pior: se jogar no desconhecido do outro mundo, sem saber o que vai encontrar, ou continuar no conhecido - e odiado - mundo dos vivos? 
E aí, quando tudo nos leva a crer que o suicídio é covardia - é fuga! -, Hamlet nos põe a pensar que viver e suportar uma vida detestava que é a verdadeira covardia - o medo de enfrentar a morte!

Esse é o dilema do suicida, de todo aquele e de cada um que um dia já se pegou perguntando: "pra que continuar vivendo? pelo que continuar vivendo?" 

Depois desse momento #literaturadadepressão (por favor, não se matem depois desse post! sério!),  deixo o Poeta falar:
Ser ou não ser, eis a questão! Que é mais nobre para a alma: sofrer os dardos e setas de um destino cruel, ou pegar em armas contra uma mar de calamidades para pôr-lhes fim, resistindo? Morrer...dormir; nada mais! E com o sono, dizem, terminamos o pesar do coração e os inúmeros naturais conflitos que constituem a herança da carne! Que fim poderia ser mais devotamente desejado? Morrer...Dormir!...Talvez sonhar! Sim, eis a dificuldade! Porque é forçoso que nos detenhamos a considerar que sonhos possam sobrevir, durante o sono da morte, quando nos tenhamos libertado do torvelinho da vida. Aí está a reflexão que dá à desventura uma vida assim tão longa! Pois, senão, quem suportaria os insultos e desdéns do tempo, a injúria do opressor, a afronta do soberbo, a angústia do amor desprezado, a morosidade da lei, as insolências do poder e as humilhações que o paciente mérito recebe do homem indigno, quando ele próprio pudesse encontrar repouso com um simples estilete? Quem gostaria de suportar tão duras cargas, gemendo e suando sob o peso de uma vida afanosa, se não fosse o temor de alguma coisa depois da morte, região misteriosa de onde nenhum viajante jamais voltou, confundindo nossa vontade e impelindo-nos a suportar aqueles males que nos afligem, em vez de nos lançarmos a outros que desconhecemos? E é assim que a consciência nos transforma em covardes, é assim que o primitivo verdor de nossas resoluções se debilita na pálida sombra do pensamento e é assim que as empreitadas de maior alento e importância, com semelhantes reflexões, desviam o seu curso e deixam de ter o nome de ação. 

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#RLL - Gargântua e Pantagruel

>> domingo, 10 de julho de 2011

"E se desejais ser bons pantagruélicos 
quer dizer, viver em paz, alegria, saúde, sempre se divertindo)
 não fieis jamais nas pessoas que 
olham pelo  buraco da fechadura" 
(RABELAIS, 1991, p. 426)   
"Muito mais vale o riso do que o pranto.
Ride amigo, que rir é próprio do homem"
(RABELAIS,  1991, p. 31)

Depois de uma pausa motivada pela última semana do semestre (primeiro semestre como mestranda, YEY!), volltamos com as nossas Resenhas Literárias Livres!


#rll - Gargântua e Pantagruel
Disciplina - Literatura comparada: literatura e morte
Autor: François Rabelais (lê-se "françoá rab'lé", é francês)
Ano: séc. XVI - Os cinco livros que compõem a obra foram publicados entre 1.532 e 1.553

Rabelais
Em cinco livros, o mestre Alcofribas Nasier, (anagrama de Fronçois Rabelais) narra os divertidos e inusitados acontecimentos da vida do gigante Gartântua e de seu filho, Pantagruel. 

Escritos no Renascimento por um controverso autor, os cinco livros tem como matéria prima a cultura popular - as festas, os ditados, as anedotas, os mitos - aliada à erudição do autor-padre-médico, que cita filósofos gregos e latinos e doutores da Igreja.
Apesar de ser cristão, Rabelais foi criticado e perseguido pela Igreja Católica, por Calvino e pela Sorbonne, devido ao conteúdo (muito) obsceno e por vezes herético de sua obra.

O teórico da cultura e da literatura Mikhail Bakhtin fez do estudo de obra desse autor a sua tese de doutorado, que foi publicada como livroA cultura popular na Idade Média e no Renascimento, o contexto de François Rabelais. 
Gargântua bebê
Em sua tese, Bakhtin discute e exemplifica a presença e a origem de elementos da cultura popular na obra de Rabelais, como o riso, o vocabulário da praça pública, as formas e imagens da festa popular, o banquete, a imagem grotesca do corpo, entre outros, e aponta para a importância dessa obra como paradigma das que se seguiram na modernidade.
Entre as fontes históricas e literárias do riso em Rabelais, Bakhtin destaca a influência de Luciano de Samósata, de quem já falamos nas #rll.

Do estilo de vida de Pantagruel (gigante-filho) originou-se o termo pantagruelismo: uma filosofia de vida segundo a qual o que importa na vida é rir gozar dos prazeres da comida, da bebida e do sexo! Por isso, numa leitura bem simplista, o livro é repleto de de referências escatológicas ao corpo e às necessidade corporais,  muita comilança, bebedeira e putaria (ops, falei).
Rabelais critica e zomba por meio do riso e da ridicularização os poderes e a seriedade do governo, do clero e dos acadêmicos pedantes. Escandalizou quando foi publicado e escandaliza ainda hoje os olhos virgens dos leitores mais tímidos e puritanos.

Pantagruel bebê
Eu poderia ficar aqui dissertando sobre a influência desse livro na literatura ocidental moderna, sobre seus elementos renascentistas, a presença da oralidade, sobre a morte saturnal e o papel do carnaval na cultura popular trabalhada por Rabelais, maaas, como o que me interessa no blog é despertar em vocês o desejo e a curiosidade da leitura - seja pelo motivo que for, eu fico por aqui e deixo alguns trechos divertidos. Apesar de serem 2 volumes de umas 500 páginas cada (são muitas por causa das ilustrações de Gustave Doré), vale muito a pena conhecer o universo de cabeça pra baixo desse fanfarrão que é Pantagruel! 




O simpático Grandgousier [pai de Gargântua], bebendo e se divertindo com os outros, ouviu o grito horrível que o filho tinha dado ao entrar na luz desse mundo quando bradava: "Beber, beber, beber! (RABELAIS, 1991, p. 60)
Dos três até os cinco anos, Gargântua foi nutrido e instruído com toda a disciplina conveniente, por ordem de seu pai, e o seu tempo se passou como dos meninos do país: quer dizer, bebendo, comendo e dormindo; comendo, dormindo e bebendo; dormindo, bebendo e comendo (RABELAIS, 1991, vol. 1, p. 75).
Panúrgio tinha sessenta e três maneiras de arranjar dinheiro segundo a necessidade, das quais a mais honrosa e comum era a subtração de bens furtivamente praticada; era também trapaceiro, batoteiro, beberrão, vagabundo se estava em Paris. E, ao mesmo tempo, um ótimo rapaz e sempre maquinando alguma coisa contra os mantenedores da ordem (RABELAIS, 1991, vol. 1, p. 342).
- Serei corno?
- [...] Que me perguntais? Se sereis corno? [...] Escrevei esta palavra em vosso cérebro com um estilete de ferro, que todo homem casado corre o perigo de ser cabrão. A cornice é um dos apêndices naturais do casamento. A sombra não segue mais naturalmente o corpo do que os chifres seguem os homens casados  (RABELAIS, 1991, vol. 1, p. 553).
Especificamente para a disciplina de literatura e morte, interessa a passagem na qual Panúrgio, amigo de Pantagruel, traz de volta à vida o companheiro Epistemon, morto em batalha:
De súbito Epistemon começou a respirar, depois abriu os olhos, depois bocejou, depois espirrou, depois deu um peido com todo o gosto. Então disse panúrgio: "A estas horas ele está seguramente curado". E deu-lhe a beber um copo de vinho branco, com um assado açucarado. Dessa maneira, Epistemon se curou, exceto que ficou resfriado durante mais de três semanas, e com uma tosse seca de que não se conseguiu curar-se senão bebendo muito. E então começou a falar, dizendo que tinha visto os diabos, conversado familiarmente com Lúcifer e se divertido muito no inferno e nos Campos Elíseos. E afrimava na frente de todos que os diabos eram bons sujeitos (RABELAIS, 1991, vol. 1, p. 404) 
E o recém-ressuscitado segue contando que no inferno todo mundo que era importante na terra não é mais, por exemplo, Alexandre, o Grande, no inferno remenda calções. Segundo Augusto Rodrigues, professor da disciplina: O inferno, em Gargantua e Pantagruel, também é um lugar próspero, movimentado, como o ambiente das feiras. Os seres comem, dançam, bebem, amam, trabalham, mendigam, regozijam-se. Mudam-se papéis, mas as necessidades continuam as mesmas. A morte não iguala, ela inverte. Maiores viram menores, miseráveis e filósofos são beneficiados pela nova condição.


Enfim, pra terminar esse post que já vai ficando muito acadêmico (influência dos artigos que eu tive que concluir semana passada), é importante dizer que esse livro marca a entrada dos diálogos dos mortos na modernidade, ainda cínica, mas individualizada, diferentemente da distância histórica e épica da epopeia e da centralidade teológica da Idade Média.

Daqui pra frente nossos livros contemplarão cada vez mais os problemas e angústias dos indivíduos - sem que a coletividade deixe de ser também representada.

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#RLL - Três autos: Barca do Inferno, do Purgatório e da Glória

>> sexta-feira, 1 de julho de 2011

"Ora assim me salve Deus/
e me livre do Brasil" 
(GIL VICENTE, 1942, p. 39)

A Resenha Literária Livre de hoje, e última da semana, é três em uma: falaremos de três autos de Gil Vicente.

#rll - Auto da Barca do Inferno, Auto da Barca do Purgatório e Auto da Barca da Glória
Disciplina: Literatura Comparada - literatura e morte
Autor: Gil Vicente (português, mas que também escreveu em castelhano)
Anos: séc XVI: 1517, 1518 e 1519, respectivamente.

Já tivemos epopeia, ou poema épico, sátira menipeia, e uma comédia (divina). Hoje, trazemos mais um gênero para nossas discussões literárias: o auto. Gênero típico da Espanha e de Portugual medievais, o auto tinha quase sempre cunho religioso e moralista, e era encenado nas igrejas durantes festas e solenidades. Apesar de ser concebido para a encenação, o auto tem grande valor literário e encontra em Gil Vicente, considerado o maior dramaturgo português, um de seus grandes expoentes. O autor português toma emprestadas muitas alegorias e imagens da Divina Comédia do italiano Dante (a começar pela tríplice divisão dos lugares pros quais podemos ir depois da morte). 

Gil Vicente, "entendido" 
de Teatro. 
Um dos mais famosos autos de Gil Vicente (volta e meia cobrado em vestibulares e sempre presente nos livros didáticos de literatura) é o Auto da Barca do Inferno. Ele é o primeiro (também mais divertido e agitado) de uma trilogia, e não foi encenado dentro de igrejas, mas em palcos exteriores - as "câmaras" (afinal a igreja não poderia ser palco do próprio inferno!). A estrutura dos três é a mesma: as almas chegam até onde estão os barqueiros - o diabo na barca do inferno e um anjo na barca da glória - e tentam conseguir um lugar (sempre na barca da glória, claro!). Em uma espécie de Juízo final particularizado (característica já da Renascença em uma Idade Média Tardia), os barqueiros acusam as almas pelos pecados que cometeram em vida, ou exaltam suas virtudes, e assim decidem em qual barca cada uma poderá embarcar. 

Na Barca do Inferno vão os piores "tipos" da sociedade portuguesa: os que não são pobres nem nobres, (um esboço da futura burguesia): o fidalgo orgulhoso; o onzeneiro (usurário), simbolizando a avareza e ambição; o sapateiro - aquele que sabe da vida de todos, que rouba nos preços dos serviços, representa os artesãos e bisbilhoteiros (já pode assustar a sua tia velha que não cuida da vida dela); o frade, que apesar do ordenamento religioso é fornicador e adúltero; a mulher do padre (!); Brívida Vaz, a alcoviteira, que facilita e é cúmplice dos pecados (fornicação, adultério, prostituição); o ladrão; o juiz corrupto e seu adulador que acha que ainda vale alguma coisa ser diplomado (mesmo estando morto!).

Na Barca do Purgatório vão os pobres - trabalhadores - que cometeram pequenos pecados (resultado da sua pobreza, muitas vezes) e que ganham (?) a chance de sofrer mais um pouco no Purgatório para alcançar o Paraíso.


No auto da Barca da Glória, são representados os nobres da sociedade portuguesa: reis, imperadores, membros do clero, que, por seus (muitos) pecados, quase vão para o Inferno, mas, no último minuto, são salvos pelo próprio Cristo ressuscitado (afinal são eles que estão ali assistindo e pagando a peça). Assim, o autor consegue fazer sua crítica social sem irritar os poderosos da corte portuguesa.

Mesclando elementos da cultura popular e da cultura erudita, Gil Vicente escreveu autos divertidos e extremamente críticos e moralistas, que serviam de distração para os nobres e educação religiosa para o povo, e resistiu ao tempo como um documento de uma sociedade no limiar de duas mentalidades: a medieval e a da Modernidade. 
(Por falar em "resistir" ao tempo, a edição que eu peguei na BCE é a própria portuguesa de 1942. Pra escrever esse post fui re-contaminada por ácaros portugueses de quase 70 anos!)

Com muita ironia e cinismo, o riso está sempre presente na obra: anjos e o diabo debocham dos pecadores que estavam crentes que iriam para o Paraíso. Pra quem gosta de teatro, ler pelo menos esses três autos é fundamental (ainda mais porque no Brasil os autos ganharam um novo fôlego com a chegada dos padres jesuítas que os utilizavam na catequese dos índios, permanecendo através dos séculos na cultura popular, especialmente na nordestina, até chegar ao famosíssimo e global Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna). Pra quem não curte teatro, vale a pena a leitura pelo texto divertido e muito dinâmico.

 Semana que vem as #rll voltam com Rabelais, Shakespeare, Cervantes e Dostoiévski. Aguardem!

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