avulsas #3 (especial França)

>> segunda-feira, 28 de maio de 2012

Nesse fim de semana hospedei um mochileiro Francês, de nome Antoine. Pedi pra ele ler pra mim um dos meus poemas favoritos de Les Fleurs du Mal, de Baudelaire (que agora eu tenho gravado em francês, ê!).

Fica a dica poética - e musical - pra começar a semana. 

À une Dame créole

Au pays parfumé que le soleil caresse,
J'ai connu, sous un dais d'arbres tout empourprés
Et de palmiers d'où pleut sur les yeux la paresse,
Une dame créole aux charmes ignorés.

Son teint est pâle et chaud; la brune enchanteresse
A dans le cou des airs noblement maniérés;
Grande et svelte en marchant comme une chasseresse,
Son sourire est tranquille et ses yeux assurés.

Si vous alliez, Madame, au vrai pays de gloire,
Sur les bords de la Seine ou de la verte Loire,
Belle digne d'orner les antiques manoirs,

Vous feriez, à l'abri des ombreuses retraites
Germer mille sonnets dans le coeur des poètes,
Que vos grands yeux rendraient plus soumis que vos noirs.

Charles Baudelaire, 1814

To a Creole Lady

In the perfumed country which the sun caresses,
I knew, under a canopy of crimson trees
And palms from which indolence rains into your eyes,
A Creole lady whose charms were unknown.

Her complexion is pale and warm; the dark enchantress
Affects a noble air with the movements of her neck.
Tall and slender, she walks like a huntress;
Her smile is calm and her eye confident.

If you went, Madame, to the true land of glory,
On the banks of the Seine or along the green Loire,
Beauty fit to ornament those ancient manors,

You'd make, in the shelter of those shady retreats,
A thousand sonnets grow in the hearts of poets,
Whom your large eyes would make more subject than your slaves.

A uma dama crioula 

Conheci uma crioula de encanto ignorado.
E cuja sombra nosso olhar se delicia,
Sob um dossel de agreste púrpura bordado,
No inebriante país que o sol acaricia,

A graciosa morena, cálida e arredia,
Tem na postura um ar nobremente afetado;
Soberba e esbelta quando o bosque a desafia,
Seu sorriso é tranqüilo e seu olhar ousado.

Tu que és digna de ornar os solares altivos,
Junto às margens do Sena ou onde o Loire se lança,
Caso viesses, Senhora, à heróica e eterna França,

Farias, ao abrigo das sombras discretas,
Mil sonetos brotar no coração dos poetas,
Que de teus olhos, mais que os negros, são cativos.


Ass.:"la brune enchanteresse"


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Quem são essas vadias #2

>> sexta-feira, 25 de maio de 2012

Um ano se passou e Brasília se organiza mais uma vez para realizar sua Marcha das Vadias. Falei um pouco no ano passado sobre como a  e subversão do significado da palavra vadia é uma estratégia política importante pra causa da libertação feminina. 
Continuo dizendo que não sou feminista, não sou militante, mas não fujo à responsabilidade de pensar a questão feminina, como parte da sociedade, como mulher. Isso não quer dizer que eu não enxergue as contradições que esse movimento precisa assumir e trabalhar em si mesmo. Quando marchamos e exigimos à sociedade que nos respeite - somos as primeiras a ouvir esse grito. Precisamos escutar o apelo de nós mesmas - não antes - mas ao mesmo tempo em que exigimos da sociedade masculina e machista liberdade e respeito.

Dentro do movimento feminista há as que confundem feminismo com uma luta para o empoderamento da mulher - e o consequente enfraquecimento do homem. A conquista do poder pela mulher na lógica machista - dominadora - quer apenas uma inversão de papéis - é a lógica de quem não se incomoda com a opressão em si, mas apenas com a sua condição pessoal de oprimido. Uma vez que ele tenha tomado o lugar do opressor, tudo bem, problema resolvido. Essas "feministas" reproduzem um discurso de humilhação e subordinação, a política do toma-lá-dá-cá, referenda a desculpa de "se ele me bater eu bato nele", "lá em casa é meu marido que apanha".

Quem se importa com a opressão em si precisa subverter e se desvencilhar dessa lógica machista. Na lógica machista, a fêmea deve se comportar também como macho para ser respeitada, se masculinizar, ser respeitada como um homem por agir como um homem. "Agir como homem" e "agir como um ser humano livre" confundem-se como sinônimos, porque por séculos apenas os homens eram seres humanos livres
Queremos mudar isso, mas não sabemos como. Não conseguimos separar da figura masculina o que é próprio do homem e o que é próprio do ser livre - na dúvida, imitamos tudo, queremos superá-los em tudo. Agir "como mulher" é ser o lado negativo do homem, livre: é ser submisso, fraco, frágil, covarde - "Não seja mulherzinha"

Um dos nossos grandes desafios é entender que para sermos seres humanos livres não precisamos ser homens! Precisamos tirar do homem o privilégio de ser o único ser livre, para que possamos parar de classificar nossas atitudes em "coisas de homem" e "coisas de mulher" e passemos a enxergar nelas atos de pessoas livres ou de oprimidos. Assim, não lutaremos contra a figura masculina, contra o homem em si, mas contra a opressão - de onde quer que ela venha, inclusive de outras mulheres!

O manifesto da Marcha desse ano traz explícita a preocupação em especificar cada uma das lutas das mulheres que, além de mulheres, são indígenas, negras, portadoras de necessidades especiais. Essa distinção é muito importante. É ilusão pensar que dentro do segmento "mulher" não há divisões e conflitos internos muito acentuados e marcados por um histórico de violência. A mulher negra e a mulher branca estão em campos opostos em outras lutas: ricos x pobres, patrões x empregados, privilegiados x explorados, senhores x escravos, sinhá x mucama, brancos x negros. Estando separadas em tantos embates, como esperar que o fato de serem todas "mulheres" irá apagar esse histórico?
Não, não vai.
A mulher branca nem sempre foi solidária, e nem sempre reconheceu a luta e as conquistas da mulher negra e pobre. Até hoje só é considerado parte do movimento feminista as ações que são intelectualmente apoiadas. Ainda há quem não consiga enxergar a grande emancipação da mulher pobre, que luta por essa emancipação desde que se entende por gente, desde que se vê explorada, subjugada, violentada e oprimida pelo pai, pela mãe, pelo patrão, por um namorado, dois, um marido - até não poder mais e dar seu próprio brado de liberdade, que pode não aparecer na forma de manifestos, mas em atitudes revolucionárias que a tornam responsável por si mesma dentro de um contexto de dominação.
A mulher que usa seu corpo como bem entende - mas não sabe expressar isso teoricamente - ainda é vista como a que "se desvaloriza". O conhecimento e a escolarização dá respaldo e o direito de chamar de liberdade na classe média o que ela mesma chama de pura e simples "safadeza", e "falta de vergonha"  nas classes pobres.

Por um mundo em que
 a "liberdade" de uma
 não seja
 a "falta de vergonha" da outra
.
Fingir que não existem abismos entre nós, mulheres, que marcharemos amanhã é enfraquecer nossa própria luta. Marchamos por direitos iguais perante os homens, sem esquecer que as primeiras a ouvir nossos gritos somos nós mesmas, sem esconder que entre nós há oprimidas e opressoras, e assumindo o compromisso de lutar não contra o opressor, mas contra a opressão, venha ela de que lado vier. Essa vadias são mulheres, que unidas lutam para ser livres, mas que sabem, cada uma, que têm sim,  sua própria uma cor, sua própria etnia, sua própria história.




Fortalecemos a luta umas das outras ao tolerarmos nossas diferenças para conquistarmos um direito maior, o direito de não aceitarmos qualquer forma de violência, seja ela moral, psicológica ou física, provocada unicamente pelo fato de sermos mulheres - de sermos vadias. 


À marcha!

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sobre nada: sobre mim

>> segunda-feira, 21 de maio de 2012

Espécie de continuação desse e desse e de todos os posts que falam do meu assunto preferido: eu! #narcisofeelings

Há algum tempo não publico aqui nada muito pessoal. Escrever aqui significa me expor quase sem reservas - muitos dos que leram meia dúzia de posts daqui sabem mais sobre mim do que pessoas que convivem comigo diariamente. 

Não só pelo que eu escrevo, mas também pelo que silencio. Acho que não escrevi aqui antes porque sabia que isso seria baixar a guarda, me oferecer como um livro que cai de repente, só pra que a gente apanhe-o do chão, folhei-o, e então se deixe invadir pelas lembranças que ele evoca.

Pois bem, eis-me aqui caída de uma estante qualquer da memória, de repente. Penso sobre os perigos de continuar escrevendo. Penso em quantas vezes essa escrita, íntima e pensada como uma aliada, me traiu, revelou sobre mim mais do que eu queria, até negou e contradisse a si mesma. Tudo culpa dos meus bons leitores, que leêm mais do que eu escrevo, que leêm principalmente o que eu não escrevo.

Leêm, por exemplo, que passados alguns meses desde que eu fiquei solteira, nem uma linha foi escrita aqui sobre o assunto. Sabem que esse silêncio me expõe ainda mais: a ferida ainda está aí. Talvez tenham lido no texto não escrito que a dor não tenha passado ainda por aquele momento de elaboração em que ela se transforma em arte, criação, discurso; que ela ainda é experiência, e não narrativa.

Talvez estejam certos.

Nesse ensaio sobre nada, e sobre mim, penso em como a leitura é fundamental na minha vida. Aprendi com os livros a ler as pessoas, e todo o resto que há para se saber sobre mim é decorrência disso. Meu estudo, meus interesses, meus planos, tudo se refere a isso: ler, ler, ler. E, pela leitura, conhecer.

Uma vez alguém me disse que a minha vontade de fazer e realizar todo o tipo de coisas era baseada principalmente na satisfação de contar aquilo depois. Que eu vivia pela narrativa, e não pela experiência em si. 
Sempre achei isso ofensivo, mas, como muitas vezes, esse meu leitor estava certo. Vivo de discurso, e tudo na minha vida afirma isso. A minha lupa para enxergar o mundo é o discurso. Acredito no poder da palavra, não como entidade mística com propriedades evocatórias, mas como construção real e concreta, na qual vivo e luto. 
Entendo - e a minha pesquisa no mestrado é ao mesmo tempo causa e consequência disso - que viver e narrar são sinônimos e, por isso, silenciar é uma forma de morrer em vida, e continuar falando de alguma forma depois da morte é uma forma de vida eterna.  

Sinto que as minhas experiências são muito mais minhas quando as reorganizo com o meu discurso, quando as elaboro com a minha memória. 
Assim, roubo também as experiências alheias, que passam a ser minhas quando faço com elas esse mesmo processo de reelaboração.

Às vezes esqueço, porém, que não posso fazer isso sozinha. Preciso de público, preciso de plateia, preciso do meu próprio leitor, esse espelho distorcido no qual me re-encontro, no qual eu me torno outra para mim mesma - e assim me conheço melhor.

Por alguns anos, tive um leitor que aprendeu a me ler como poucos. Um espelho no qual minha imagem refletia de maneira difusa - consequências do formato único e irregular de cada espelho -, mas no qual eu me reconhecia. Hoje o olhar desse leitor atento, completo, crítico, está voltado para outras publicações.
E de repente o livro que sou eu sentiu-se inseguro para ser lido por outras pessoas - pelo grande público - sem passar antes pelo crivo desse leitor ao mesmo tempo sensível e exigente. Fechou-se. Superficializou-se, deixando disponível para novos leitores só sua capa, e no máximo uma orelha (hehehe, até onde vou levar essa metáfora?).


Mas livro fechado não tem voz. É um produto na vitrine, um símbolo na estante. E minha vida é discurso! Preciso falar, preciso trocar, preciso ler e ser lida - ser também um espelho (distorcido pelas minhas próprias experiências) do mundo.
Novos leitores mostraram-se interessados e interessantes. Talvez nenhum tenha a argúcia, a experiência e a habilidade do leitor ideal. Mas estão dispostos a perguntar, trocar, analisar, a me conhecer, a me descobrir. 

(Lendo de novo esse texto até aqui percebi que do meio pro final ele não faz o menor sentido, ou é extremamente revelador, dependendo do tipo de leitor que você é. Gostei disso!)

Quero continuar contando e narrando minhas experiências, reelaboradas pela minha memória, que acontecem de novo pelo meu discurso. Ao mesmo tempo quero aprender a conviver com as experiências que ainda não passaram, com as saudades pungentes e pulsantes que não deixam com que eu conclua de vez alguns capítulos dessa edição. Mas, como boa letrista literata, sei que há capítulos que ficam na cabeça do escritor se desfazendo e se refazendo até depois da conclusão do livro todo. 

Na minha história, um capítulo em especial só tem uma frase concluída até agora, que é a última:
"E foram felizes"
Tudo o que vem antes dela ainda está sendo escrito.

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