desejos para o novo

>> terça-feira, 17 de dezembro de 2013

2013, o ano que não me prometeu nada (http://bit.ly/1kSfdL3), me deu tudo. Aprendi a desistir (que falta que me fazia saber desistir!). Aprendi a ter coragem de ser eu - ou melhor, a ter coragem de ser quem eu queria ser. 

Aprendi a ter coragem de ser alguém sensacional porque aprendi a desistir de ser uma pessoa satisfatória, regular, aceitável. 

Aceitável é bom, mas sensacional é espetacular! E entre bom e espetacular, bem...

Em 2013 a minha história e a nossa História estiveram juntas. 
Manifestações nas ruas em julho. Jornada Mundial da Juventude no Rio. Mais médicos para o Brasil. 
Eu saí da posição confortável de expectadora - e crítica - da sociedade pra participar ativamente daquilo que depois seria noticiado. E para, a partir daí, pensar. A partir daí, colaborar de alguma forma para os debates com a minha opinião - opinião que é experiência refletida. 
Porque eu só posso falar com responsabilidade daquilo que eu vivi, do que eu sou. O resto é conjectura, manipulação, generalidade, ruído inquieto de quem não suporta o silêncio - e disso a internet já tá cheia. 

Como eu gosto bastante de falar - e quero sempre falar com responsabilidade - preciso viver mais coisas, ser mais coisas. Quero viver mais, ser mais e melhor. São meus desejos pra 2014. Quero que a apatia, o tédio e a tristeza passem bem longe de mim - porque há muito trabalho pra ser feito nesse mundo.
E quero ter a capacidade de inspirar mais pessoas a serem assim também. 

Em 2014 prometo ser intransigente com os tristes, os conformistas, os desesperados, e com toda a sorte de gente que gasta toda a sua energia procurando motivos pra ficar deprimida, porque ser deprimido é cool, ou porque ser feliz é muito fácil pra quem tem tudo, e não desafia a intelectualidade dessa gente o suficiente.

Sempre que uma dessas pessoas quiser ficar perto de mim, vou lhe dar duas opções: Ou muda ou muda.

Porque eu sei o que quero, e o que eu quero é mudar o mundo (pra melhor!) e isso requer muita energia, e o que me dá energia é a felicidade. O que me dá energia é essa paixão que eu sinto por gente, é esse amor que precisa urgentemente de se dar, de se dar, de se dar...

Que em 2014 eu encontre quem me saiba receber. 

A vida é generosa com quem é generosa com a vida. E, de novo, falo do que vivo, do que sou. Nunca fui tão feliz, tão ciente das minhas capacidades, tão verdadeira nas minhas palavras, tão transparente nos meus gestos como agora, depois de ter desistido de ser uma pessoa "satisfatória". Nunca amei tanto, nem tão bem como amo quem amo hoje.

A todos os meus amigos, desejo que aprendam também a se dar, que desfrutem dos prazeres da generosidade, que abdiquem da mesquinhez que é privarem o mundo de tudo o que verdadeiramente são. O mundo merece - o mundo precisa de - gente que se dê. Menos mistério e mais transparência. Menos "no fundo, no fundo, eu até gosto de você" e mais amor à flor da pele.

(como sempre, um poeta disse tudo o que eu queria dizer, bem antes e melhor, e em apenas alguns versos. deixo aí fernando pessoa pra vocês preguiçosos)

Feliz natal, amores, e um 2014 sensacional pra todos nós.


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gente que não me entende

>> terça-feira, 19 de novembro de 2013

Tenho esses quatro caras que passaram na minha vida - e espero que dela nunca saiam - que nunca foram muito bons em me entender. Sempre que eu estava triste, cansada, deprimida ou zangada com alguma coisa, eles simplesmente não entendiam.
Você tá triste?, diziam, mas triste por quê? Você tem tudo!

E eu teimava em dizer que não, que ainda me faltava mais - mais beleza, mais inteligência, mais amor, mais sombra e água fresca - e me afastava, mais triste e um pouco pior, porque incompreendida por pessoas de quem eu tanto gostava.

Mas passava um tempo e, de tanto eles insistirem que eu não tinha motivos pra estar triste, e me darem algum trabalho pra eu me ocupar - a tal da tristeza ia embora mesmo.

E, agora, que consegui ser eu mesma essa pessoa que não me entende, consigo enxergar o que eles enxergavam em mim e o porquê deles nunca terem me entendido.

Eu reclamava como alguém com quem a vida era muito injusta, pra quem o fardo era muito pesado, como quem recebeu mais tarefas do que podia realizar, como uma donzela frágil e desprotegida, desprovida de talento, habilidade e beleza, diante de um mundo cruel que a perseguia.

E eles nunca entenderam essas reclamações, porque, pra eles, elas vinham de uma mulher inteligente, forte, bonita, agradável e simpática, com talento e habilidade pra compreender e modificar qualquer coisa no mundo.

Obrigada, meus queridos, por terem enxergado em mim qualidades que por muitos tempo eu não pude ver. Através dos seus olhos eu comecei a acreditar que talvez, bem talvez, eu não fosse tão frágil assim.

Por outro lado, a quem entende a pobre de mim, coitadinha do mundo, vem cá que eu te dou colo, que você precisa mesmo, que sem isso você não dura nada, nada, que ah, se não fosse eu no mundo pra te dar força, digo: não entenda! Essa mocinha é mimada, e se a gente não der uns sacode nela de vez em quando, ela senta no meio-fio, fica choramingando e não sai do lugar.

JJAT, obrigada por todas as vezes que vocês não me entenderam. Agora eu entendo vocês.

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agora eu entendo o uísque

>> segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Estou às portas do inverno no norte da península ibérica, o termômetro marca 8 graus. À minha cabeça vêm milhares de ideias mirabolantes, epifanias, a solução de todos os problemas do mundo... só tenho que sentar em frente ao computador e escrever para divulgar a boa nova, mas, puta que o pariu, oito graus, uma da manhã, meus dedos estão congelando... O texto sensacional fica pra amanhã.

Chega amanhã, não vale a pena sair da cama antes do meio dia - Jesus, tá frio! Saio da cama, arrumo os lençóis que vou desarrumar de novo em doze horas, e penso em preparar algo pra comer. Passo horas na cozinha, descobrindo o prazer de cozinhar - quando dá certo - e saboreando o fruto do meu próprio esforço. 

Cai a tarde, chega a noite, leio as notícias do público, do g1 e do correio. Hm, já é hora de comer de novo, e de tomar chá, que, quando bem quentinho, faz tudo parecer melhor. Espero por elas, as ideias. Mas elas tardam a chegar. Vão chegando aos poucos, e se fazem de complexas: exigem muitos parágrafos para se explicar, e querem subordinadas, ou elipses, ou sintaxe de exceção para que se deixem expor. E pra quem? E pra quê? 

Nem, estou às portas do inverno no norte da península ibérica, o termômetro marca 8 graus. O texto sensacional fica pra amanhã.

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Coisas que fazem a gente pensar

>> segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Quando eu era uma pseudo-cult mirim da periferia – alguém chata pra caramba -, eu gostava de dizer, naqueles caderninhos de perguntas e respostas (avô do facebook) que eu “gostava de coisas que me fazem pensar”. Na verdade, “gosto de coisas que me fazem pensar” era uma das frases que eu mais dizia quando me descrevia pra qualquer um. Pobre mini-eu.

Mas, bem, eu cresci e deixei de ser babaca (bom, julgo que sou menos agora), maaas, aposto que como castigo pelo pedantismo precoce, volta e meia esbarro com alguém que “gosta de coisas que a fazem pensar”. 

Nada contra pensar – pensar é bom, em doses controladas -, mas, sim, contra tudo o que está contido nessa frase nada inocente.

A pessoa pseudointelectocult que profere essa generalidade vaidosa está dizendo muito mais do que o tamanho da frase sugere. Primeiro, ela coloca em oposição “coisas que não me fazem pensar”, (das quais não gosta, porque não têm qualidade), e “coisas que me fazem pensar”, (das quais gosta, porque têm qualidade). Segundo, nessa segunda categoria, ela coloca tudo o que é pré-rotulado e pré-vendido como intelectual, cult, “inteligentoso”: filmes, livros, assuntos etc. Produtos que ganharam seu status de cult às custas de não serem “compreendidos” por “qualquer pessoa”, ou seja, produtos que selecionam por si mesmos “seu” público.

Mea culpa, eu era dessas. Escrevia lá no caderninho na perguntas “Qual seu programa de TV favorito?” que gostava de ver documentários interessantes ou jornal, enfim, “coisas que me fazem pensar” (não é difícil entender porque fui uma garotinha sem amigos até os 15 anos, né?). Era mentira, claro, eu a-do-ra-va novela (e ainda adoro), assistia todas com papai, que também é noveleiro (desculpa, pai, te entreguei), mas eu não podia trair a pose intelecto-chatinha.

Eis que, num dia qualquer, reparei que sempre surgiam discussões calorosas a partir de temas aleatórios nas novelas, ou de ações aleatórias dos personagens. Reparei que, sim, novela me fazia pensar. E um mundo novo se abriu: quem escolhe pensar ou não (assumindo o termo “pensar” aqui como “refletir”, ou “dedicar algum esforço de abstração na compreensão do quer que seja”) sou eu. Não dependo da “qualidade” do input. Descobri um novo sentido pra “pensar”, diferente do que é tão superficialmente valorizado pelas pessoas que se consideram cultas. A partir daí, posso construir teses elaboradíssimas sobre big brother, facebook e filmes com explosões. 

[Isso porque tudo o que conhecemos do mundo é feito de discurso, e todo discurso é produto da prática humana, que é construída pelo discurso, e assim pra sempre, num ciclo sem fim. Tudo o que fazemos para explicar e ordenar o mundo – desde nomear os seres até elaborar fórmulas, passando por mimetizar as experiências vividas e imaginadas por meio da arte – é uma forma de interagir com o mundo externo – é cultura. E toda cultura é passível de análise, reflexão, toda cultura pode estimular pensamentos mais ou menos elaborados.

Quem escolhe sou eu, a pessoa pensante. E a partir daí, não faz mais sentido dividir as coisas em categorias como “me fazem pensar/não me fazem pensar”.

É claro que o “entendimento” de algumas coisas requer um poder de abstração maior que o de outras, mas isso também pode depender da perspectiva de quem analisa. Uma novela pode ser uma historinha água-com-açúcar com um final previsível. Mas pensar no porquê ela atrai a atenção de tanta gente, e que comportamentos da sociedade que a assiste ela reproduz, e em que medida as reproduz, e como a relação patrocinador-arte funciona nesse tipo de produto, e claro, porque a gente assiste mesmo sabendo o final – que é uma pergunta meio boba, e também fundamental, parente daquela existencial “por que a gente vive se sabe que vai morrer?” – rende reflexões interessantes, consistentes e, na minha não tão humilde opinião, é melhor do que consumir outro tipo de produto simplesmente porque tem um rótulo de “produto de qualidade”.

Em outras palavras, não adianta assistir um filme iraniano só porque filmes iranianos estão na crista da onda do cool. Assistir Thor me diz muito mais sobre a minha cultura, meu tempo, meu espaço, desde que eu faça as perguntas certas.

(com o plus a mais de ter o gatíssimo do Chris Hemsworth – e daí já podemos questionar os padrões de beleza e força e masculinadade da sociedade pós-moderna capitalista nos tempos da indústria do entretenimento e suas franquias milionár- enfim, vocês entenderam).

Gosto de pessoas que sabem pensar sobre as coisas de que gostam.

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Não existe amor em BsB II

>> domingo, 3 de novembro de 2013

Brasília é feia. É concreto mal acabado. O que faz do seu coração - coração cívico e burocrático - deslumbrante é o que o emoldura e o que o ilumina. De dia, o céu azul pontilhado do branco das nuvens esparsas do inverno. De noite, as luzes que cobrem com uma aura de vida o mármore branco.

Nuble-se o céu, apaguem-se as luzes, e você é só uma tentativa de cidade, Brasília. Um esqueleto opaco e vazio.

Você não tem encanto natural, você não tem história. Sua forma não é obra do tempo - nem do geográfico nem do humano. Você é forjada, eu sei.


Eu sei porque sou como você: inventei meu céu e minhas luzes. De palavras me cubro, como elas me disfarço, num eficaz jogo de luz e sombras.

Somos, Brasília, filhas da nossa vontade. A despeito desse concreto mal acabado, desse mármore empoeirado, dessa aridez desértica, dessa carência de atrativos naturais, dessa falta de talento meu e de umidade sua, quisemos ser, artista eu, cidade você.

E nos servimos de palavras e céu azul, de sintaxe e refletores, naturalizamos o artificial, resistimos ao tempo e às comparações, insistimos em ser, artista eu, cidade você.

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Carta Ultramarina

>> segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Eis que vos escrevo da ex-Metrópole, da antiga sede do Império Colonial de Portugal, tudo aquilo que a gente aprende (ou não) nas nossas aulas de História. Uau!

É difícil começar essa primeira carta do lado de cá do oceano, porque tudo parece lugar-comum - as palavras já foram bem gastas por pessoas que realizaram seus sonhos. Por mais gastas que estejam, precisar exatamente o que é viver o seu sonho é inalcançável. Pois bem, estou vivendo o meu: estudar o que eu mais amo no mundo - justamente a arte de renovar palavras já tão usadas - num lugar que as tem usado há mais de dois mil anos, onde nasceu a língua por meio da qual eu me fiz gente.

Lugar-comum que seja, viver o sonho é mesmo isso: não saber bem a fronteira entre o vivido e o tantas vezes imaginado. Toda vez que eu passo numa rua "florbela espanca", que faz esquina com a "camões", a duas quadras da praça "almeida garret" que fica bem pertinho da "antero de quental", eu paro e penso, como o pequeno David, "is this real life?"

Nos primeiros dias, me dei o direito de ficar deslumbrada. (sim, porque todas as questões político-étnico-sociais-etc pipocam aqui o tempo todo, afinal, eu vim pra cá estudar literatura e cultura, e, sim, continuo a ser a mesma pessoa que escreveu os outros textos inflamados e apaixonados e revoltados desse blog. então sim, eu cobro a coerência da pessoa que tava gritando por vinte centavos de real há três meses e agora paga 1.500 euros numa passagem de avião intercontinental.)

Mas eu abafei todas essas vozes "istas", e me permiti estar completamente deslumbrada, como se deve ficar quando se vive seu sonho. E não foi difícil: o norte de Portugal é lindo! A minha nova Universidade é maravilhosa. O curso é excepcional. Fiquei deslumbrada, e muito. E o me sentir deslumbrada teve um poder anestesiante no impacto que é se ver de repente tão longe de vinte e três anos de memória e afeto.

Mas, apesar das luzes e dos ruídos, das ruínas e dos falares, aquela pergunta tem muita força: what is next? e agora, José?

O que se faz depois daquele momento fugaz, brilhante e "warm" que a gente chama de felicidade?

Depois é encarar o quarto vazio, os pais a 7 mil km de distância, a grana curta, o começar do zero numa universidade nova, numa casa nova, que é sua sem o ser, o "a vida de todo mundo que eu amo vai continuar sem mim", o "essa louça não vai se lavar sozinha", o "preciso comprar um edredon. e um ralador. e uma saboneteira. ah, minha primeira panela é linda!". Depois é lembrar que estou estudando cultura e identidade, e que isso é questionar o tempo todo o que é ser imigrante, de ex-colônia, da periferia de brasília, no brasil, que é periferia de portugal, que é periferia da europa - o que é ser eu, o que eu represento - quem eu represento. Depois é descobrir o quanto eu preciso de novos amigos e amores - e que tipos de amizades e amores serão esses novos, se serão amizades e amores mesmo, ou só ruído, ruído pra quem não consegue suportar o silêncio, silêncio que é solidão, solidão que é saudade, esse sentimento que me esfria de dentro pra fora, que vai ao encontro do frio que cada vez aumenta mais do lado de fora no outono do hemisfério norte.

Depois é saber que o depois é agora. E ele me exige resposta, posicionamento, trabalho. Acabaram-se as desculpas - acabou-se o trabalho burocrático e chato, mas que me servia de muleta pra não encarar que eu preciso decidir, afinal, se esse negócio de ser escritora é sério, e se for, que escrita é essa, que escritora é essa, que estilo é esse, que voz - qual é a minha voz? e depois ver que a primeira voz não presta, que ela tem verniz, hipocrisia, medo, moral e bons costumes. e me frustrar com isso, e desistir, até não poder mais e tentar a segunda vez, que também não vai prestar. e de novo, e de novo, e talvez nunca preste, que vai ver minha vocação na verdade era ser médica veterinária e eu nunca soube.


Então, amigos, como bem se vê, nós, das humanidades, nunca estamos satisfeitos. é um pensar-se sem fim, é trabalho que não chega pra uma vida. esta primeira carta ultramarina é fruto da decisão de que o blog continua, como laboratório-meio e como fim também, já que ele tem uma certa audiência e as palavras e as ideias, ainda que gastas, têm em si essa coisa fantástica que é não conhecer ou respeitar fronteiras geográficas (e foi isso, afinal, o que me trouxe tão longe!).

Com meu novo autor (Saramago) e com meu antigo autor (Verissimo), tenho visto que a vida é isso: não há genialidade que prescinda de trabalho. Ora et labora, aconselhou são bento, e como o trabalho dos escritores não está nada longe do monástico, termino assim essa primeira carta ultramarina, com saudade, e com a promessa de que a primeira não será a única.

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Uma questão de raiz

>> domingo, 29 de setembro de 2013

Hoje fiz meu BC. Meu big chop, que eu só descobri que tinha esse nome semana passada, quando googlei "transição capilar".

Foi preciso percorrer uma longa estrada capilar para chegarmos até aqui. Compartilho esse caminho pra quem tiver curiosidade, e porque, por mais bobo que pareça, é uma história que acho importante contar pra mim mesma.

Sou negra, meu cabelo é crespo. Ele cresce e enrola, é bem fininho, e bem cheio. Nas minhas fotos de criança só apareço com ele naturalmente solto quando estou em casa. Pra passear e pra ir pra escola, mamãe sempre prendia, de formas diferentes, mas puxando bem a raiz pra ficar esticadinha e deixando um rabinho (ou vários) cacheadinhos. Fazia o mesmo com o cabelo da minha irmã mais nova, que era um pouco mais crespo. Pentear o cabelo de nós duas devia dar uma trabalheira danada pra pobre da minha mãe. Quando eu tinha cinco anos, uma tia, que era cabeleireira, apareceu com uma solução mágica pra todos os problemas cabeludos dela: um alisamento super eficaz que era inofensivo até pra crianças. Seria muito mais prático pentear nossos cabelos se eles fossem lisos.

Fizemos o alisamento indicado pela minha tia. Eu com cinco, minha irmã com três anos, que passou uma versão "mais fraquinha". Resultado: cabelos lisos, escorridos, lisérrimos, que saíram inteirinhos nas nossas mãos. 

A queda capilar foi tão grande nas duas, que o único remédio foi cortar bem curtinho. Mamãe aprendeu a não ouvir mais o pitaco da tal tia, mas assim que o nosso cabelo começou a crescer, adotamos um novo alisamento, dessa vez mais fraco, como o nome de "relaxamento" (como se nossos cabelos fossem estressados, rs) e só aplicávamos na raiz. Quando eu voltei a passar química no cabelo, eu devia ter uns oito anos, tava na terceira série. Nesse meio tempo, mamãe também virou cabeleireira, e ela mesma aplicava os produtos no nosso cabelo. 

Eu nunca fui vaidosa. Morria de preguiça de pentear o cabelo, fazer hidratação e o diabo a quatro. Então, o relaxamento que eu fazia sempre que mamãe dizia que a raiz tava muito crescida, era basicamente a única coisa que eu fazia no meu cabelo. De resto, era lavar, passar condicionador, "creme do potão", como a gente chamava aquele skala, ou então o yamasterol, trim, ou tudo junto, puxar a raiz com a escova e prender. Usava o cabelo partido ao meio e preso. 

Não é que eu não quisesse ter um cabelo bonito. Eu só queria ter nascido com ele. Me parecia no mínimo injusto eu ter que alisar, hidratar, modelar etc o cabelo pra ele ficar bonito, enquanto minha coleguinha loira  do cabelo liso da escola simplesmente acordava, passava um pente e vinha pra escola, linda. Fosse qual fosse o resultado, eu queria ter o mesmo trabalho que ela pra "arrumar" o cabelo - nenhum.

Então, eu vivia conformada com o meu cabelo feio e sem nenhum atrativo especial. Odiava todo e qualquer trabalho que ele me dava. E nos dias que eu realmente queria parecer bonita, pedia pra minha mãe escovar. Ficava arrasada quando ela não podia e eu tinha que ir com o cabelo feio de todo dia na minha ocasião especial. E ficava arrasada também quando ela escovava e ficavam mais evidentes as marcas de que aquele cabelo não era "cuidado", com pontas duplas, raiz alta, frizz e tudo o mais.

No fim da oitava série, com 13 anos anos, decidi parar de prender o cabelo. Se minha coleguinha loira podia acordar e vir pra aula sem ter que ficar procurando xuxinha, eu queria poder fazer isso também. Então usava o cabelo solto, mesmo sem o corte ou a hidratação perfeita. Fiquei com medo de sofrer bullying (de novo) na escola, mas ninguém falou nada. Pelo menos não na minha frente

Quando entrei no ensino médio, comecei a pintar de vermelho, mas, com a preguiça de sempre (hmmm, fazer uma hidratação ou dormir? tirar as pontas ou ler um livro?), eu nunca fiz a tal da manutenção recomendada. Escovava o cabelo com mais frequência, e com o passar dos anos relaxando, a raiz dele foi crescendo com uma textura diferente, e a escova da minha mãe melhorou, enfim: eu gostava dele liso, escovado.

Quando eu entrei na UnB, veio a indiferença capilar completa: naquela terra estilisticamente de ninguém, tanto fazia como era meu cabelo. Ele estava bem cacheadinho na época, com a raiz frisada dos relaxamentos, e eu quase nunca o escovava. Mas quando escovava, sempre vinha um reforço positivo das coleguinhas: "nossa, como você tá linda! que cabelo lindo! ficou ótimo!" - um jeito gentil de tentar dar aquele toque "amiga, usa sempre assim, que daquele outro jeito não tá legal!".

Todo mundo sabe que reforço estético positivo é muito eficaz, por ser sutil e vir na forma elegante de um elogio. Mas aí eu já estava me politizando e enegrecendo cada vez mais (era a UnB!), e na semana seguinte, lá estava eu com o cabelo enrolado de novo.

Quando eu comecei a trabalhar no meu primeiro emprego, num órgão público, quis causar uma "boa impressão", e não chocar a sociedade com meu cabelo crespo. Eu comecei como secretária, tinha que passar uma "boa imagem", dizia uma das minhas chefes. Ia com o cabelo sempre escovado. Nos dias em que aparecia com ele natural, ouvia um "Poxa, não deu tempo de arrumar o cabelo hoje?" ou "Ah, hoje você tomou banho?" (por causa dos cabelos molhados.). Tudo em tom de brincadeira, claro.

Depois de uns seis meses resolvi fazer um tratamento de choque, não no cabelo, mas nos coleguinhas de trabalho e na tal chefe: cabelo natural e solto, de segunda a sexta, fizesse chuva ou sol, com hidratação e corte ou não. 

Os comentários acabaram.

No meio do ano passado, fiz meu último relaxamento de raiz, antes de fazer meu mochilão de um mês. Meu cabelo estava enorme, e totalmente liso, não cacheava mais. Quando voltei, decidi não alisar mais e me preparar pra assumir o cabelo totalmente crespo. Fiz isso quando achei que não sairia de uma prisão pra outra: da de ter que ter o cabelo liso, pra de ter que ter o cabelo crespo. Já tinha esclarecido pra mim mesma que escovar o cabelo de vez em quando não era "trair o movimento", e que no dia que eu não pudesse ir com o cabelo liso pra um evento importante, eu não me sentiria arrasada.

A transição capilar pode ser radical ou moderada: pode-se cortar o cabelo bem curtinho de uma vez, tirando-se toda a química, ou fazer-se cortes graduais, deixando a raiz crescer. Nenhuma das duas é fácil. Eu não quis cortar o cabelo todo de uma vez porque não me sentia corajosa o suficiente pra assumir um black curtinho. Também porque esse tal afro curtinho, ou penteado black, muitas vezes só é socialmente aceito quando repete os vícios de vaidade de quem tem cabelo liso: o cabelo crespo e curto é "compensado" por acessórios e lenços, o tempo e o dinheiro gastos com eles são os mesmos, só mudam os rótulos dos produtos.

E é aí que entra o que eu disse no comecinho desse texto, lá em cima: eu não sou vaidosa. Fim. "Cuidar" do cabelo não é uma das minhas prioridades de gasto de tempo, energia e dinheiro, nunca foi, talvez nunca seja. Ah, então eu vou ter o cabelo "feio" pra sempre? Talvez. Mas a verdade é: os cabelos naturais sempre ficarão mais facilmente saudáveis e, consequentemente, bonitos, do que os cabelos danificados quimicamente. Então a grande diferença que ter o cabelo natural fará na minha vida é essa: melhores resultados com o mesmo esforço que eu tenho pra cuidar dele hoje: lavar, passar um creme pra pentear e sair de casa.

Então, optei por fazer a transição de acordo com meus níveis de segurança e independência capilar, ou seja, a raiz do cabelo crescia à medida que diminuía minha necessidade de aceitação ou meu medo de reprovação, e à medida em que os reforços externos negativos ou positivos me afetavam menos.
E a transição mesmo fez isso: o cabelo grande, metade liso, metade crespo fica horroroso. Tô eu lá com minha moita bifásica em trocentas fotos do facebook, entre o fim do ano passado e o começo desse ano. Cabelo tosco, festas sensacionais. Em março fiz o primeiro grande corte: cabelo liso por cima e crespo por baixo. Em abril repiquei, e ele ficou com um caimento melhor, e com três texturas: crespo na raiz, liso no meio e cacheado nas pontas.


Hoje fiz meu BC. Queria que meu cabelo acompanhasse todas as transformações pelas quais estou passando. Chorei. Lembrei do tanto que essa relação com o cabelo já me fez sofrer, até o dia em que eu deixei meu cabelo pra lá, não sem ressentimento e não sem sufocar um pedaço da minha autoestima. Hoje fizemos as pazes, minhas raízes e eu. Vi no espelho uma mulher diferente. Ela parece adulta, corajosa, independente e segura. Ela me assustou. Me assustou porque ela era eu.


Essa não era uma questão de vaidade ou de estética, nunca foi. É uma questão de raiz, de identidade, de transparência.

Meus cabelos naturais mostrarão que, quando eu estiver mais atarefada com outras prioridades, não vai me sobrar tempo pra escolher um lenço perfeito ou fazer aquela hidratação caprichada. Mostrarão que, quando eu for me encontrar com alguém especial, prepararei o arranjo de flores mais bonito pra enfeitar meus cachos.

E mostraram hoje, pra mim principalmente, que eu finalmente topei o desafio de assumir essa mulher adulta, corajosa, independente e segura na qual a garotinha que procurava frustrada xuxinhas pela casa se transformou.

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Eu, Catequista

>> quinta-feira, 29 de agosto de 2013

O próximo sábado, 31 de agosto, será meu último dia como catequista da Paróquia Nossa Senhora Auxiliadora dos Cristãos, no Gama. Será minha primeira despedida.

***

A pequena Bruna foi batizada quando criança na igreja católica, por seus pais. Aprendeu em casa o pai nosso e ave maria, mas não recebeu uma criação religiosa específica. Desde muito nova, sentia que fazia parte de um mundo invisível, místico, mágico. Mal sabia, mas já ali recusava o materialismo terreno por uma noção mais ampla de transcendência. Na adolescência, veio a vontade de dar a essa transcendência forma e doutrina. E também de fazer da religião uma atividade de integração social, como acontecia com os seus amigos da época. 

Assim, eu participei de encontros, gincanas, cultos e todo tipo de evento das mais diversas igrejas e congregações: Igreja Batista, Assembleia de Deus, Centro Kardecista, Centro de Umbanda, Coven Wicca, e os mais diversos dentro da igreja católica.

Minha fé seguia de acordo com o sopro das amizades e das paixonites adolescentes. Antes de me decidir pelo catolicismo, flertei bastante com o culto da moda: o Wicca (relevem, o ano era 2003!), que tinha mais sensivelmente o apelo que sempre me atraiu nas religiões: algo de mágico, místico, sobrenatural, de fazer com que eu me sentisse especial e poderosa (pre-para!). 

Mas em 2004 participei de um retiro de carnaval que me apresentou a algo verdadeiramente mágico, transcendental e poderoso, mas que eu ainda não tinha: a fé. 
Até hoje, quando parece que nesse mundo não há nada além do que podemos ver, tocar e perceber superficialmente com nossos sentidos, evoco a lembrança de um momento especial daquele carnaval, que me provou de uma vez por todas que há algo mais.

Então, a fim de fazer essa coisa de ser católico direito, com 14 anos entrei na catequese da Paróquia Nossa Senhora Auxiliadora, para poder fazer minha primeira comunhão. Celebrei com 16 anos, e nos dois anos seguintes me preparei para a Crisma, que celebrei com 18. Dos 16 aos 20 participei também do Segue-me, que me deu a exata noção de que a maior forma de amor do cristão se manifesta pelo serviço.

nadinha!
Fiquei, então, pelo menos uns cinco anos "me formando" como católica. Mesmo participando das atividades da igreja, com uns quinze anos eu saía de casa batendo porta, gritando com mãe e irmãos. Ouvi da minha mãe - que não pratica nenhuma religião - muitas vezes, enquanto batia a porta atrás de mim: "De que adianta você ir pra igreja, se continua do mesmo jeito?"

Pois bem, de que adiantava? De nada. De que adiantava dormir e acordar na igreja se eu continuava sendo arrogante, impaciente, egoísta?

Fui aprender, então, o real significado da palavra conversão. E quando finalmente o aprendi, decidi que parte da minha missão era passar isso pra frente. 2009 foi meu primeiro ano como catequista. Eram crianças de 8 a 10 anos que se preparavam comigo e minha parceira pra primeira eucaristia. Meus pequenos celebraram em 2010 e no ano seguinte eu assumi, também com uma parceira, uma turma de crisma, crianças de 14 a 16 anos. 

Neste ano, 2013, assumi sozinha uma turma de Perseverança, que é um tipo de turma na qual as crianças que concluíram a primeira eucaristia esperam ter idade para começar a preparação pra crisma. Ou seja, uma turma que não te prepara pra sacramento nenhum, e que, em tese, não tem objetivo a não fazer passar o tempo.

Não com a Tia Bruna, rs. Assumi o compromisso de fazer com que nossos encontros fossem produtivos em si mesmos, ainda que não tivessem nenhum dos Sacramentos como objetivo final.

fluxograma do filho pródigo
Ao contrário do que se possa pensar, durante os encontros, eu não fico amedrontando as crianças com o fogo eterno do inferno. Nem ensinando se é certo ou errado ser gay, divorciado, evangélico, umbandista, pai ou mãe solteiro ou transar antes do casamento.

Porque catequese não é isso - e o catequista que faz isso, digo com confiança, está muito longe de cumprir sua missão de evangelizar. Está sendo hipócrita, fariseu, e usando o discurso religioso pra propagar preconceito e afirmar algum tipo de poder.

O que eu tento passar pras minhas crianças é algo muito mais profundo, abrangente e difícil: a noção do amor cristão. Tenho que trabalhar com meus meninos a construção de valores cristãos, valores que eles não trazem mais de casa, da escola, da internet, de lugar nenhum. 

Em casa, meu menino aprendeu do pai que se ele voltar pra casa "apanhado", ele apanha de novo. Na catequese, ensino que não devemos revidar as agressões que nos são feitas. Em casa, minha menina aprende da mãe que mulher de roupa curta é piranha, e que piranhas são pessoas desprezíveis. Na catequese, ensino que todas as pessoas têm valor, que Cristo olhou com carinho para todos os "desprezíveis" de sua época, que não devemos julgar nossos irmãos pelo modo com que se apresentam.

Em casa, meus meninos aprendem que não se leva desaforo pra casa, que bandido tem que morrer, que devemos ser bons com quem for bom com eles, que eles precisam "ser" alguém na vida, que dinheiro é mais importante do que tempo com a família, que amor se troca por coisas.

Na catequese, ensino que devemos perdoar setenta vezes sete, que devemos juntar tesouros no céu e não na terra, que aquele que quiser ser o primeiro entre todos deve se fazer o menor servo, que bem aventurados são os pobres, os humildes, os mansos de coração.

Nesses cinco anos, tive altos e baixos na minha fé, na minha proximidade com Deus, na minha força para seguir seus mandamentos e os da igreja católica. Mas a cada sábado, durante as duas horas em que eu estava com as crianças, me sentia mais íntima, confiante e forte do que nunca. Se ensinar é um gesto de amor, catequizar é o gesto de serviço e desprendimento que faz com que esse amor seja multiplicado e duradouro. 

Não me sinto hipócrita por ensinar algo que não pratico - porque eu não faço isso. Ensino que se deve dar atenção dando atenção, que se deve ter respeito dando respeito, que se deve ter paciência tendo paciência, que não se deve julgar não julgando, que se deve rezar rezando, que se deve perdoar perdoando. E que é normal cometer erros, e que eles não são motivo de vergonha ou culpa, mas uma oportunidade de se aproximar mais de Deus pela sua infinita misericórdia.

Jogando queimada com as crianças - cadê a catequista?
Ser catequista me faz ser uma cristã melhor, uma pessoa melhor. Me faz ter contato direto com a juventude da minha comunidade, com o que eles ouvem, assistem, jogam, brincam, aprendem na escola. Impede que eu perca a proximidade com o lugar de onde eu vim e onde me criei. Me faz ver que meu trabalho na vida de cada criança faz diferença. Que elas crescem, amadurecem e aprendem através do meu amor, da minha atenção e da minha dedicação. E isso, amigos, nada mais é do que a definição de realização pessoal.

***






Estou me mudando para Portugal e deixando minha turma, minha paróquia, minha comunidade. Minha despedida será feita colocando em prática o que a gente tenta aprender dentro da igreja. Faremos uma visita à Casa do Menino Jesus, uma instituição no Gama que dá apoio a crianças pobres de regiões afastadas dos centros que vêm fazer tratamento de alguma doença crônica nos hospitais de Brasília, e às suas mães. 

Não vou levar meus meninos lá pra dar um "choque de realidade" e dizer "olha como suas vidas são ótimas perto das vidas dessas pobres criancinhas doentes". Não. Vamos levar companhia, teatro, olhares, atenção, abraços, sorrisos. Vamos criar pontes entre crianças, mostrando que elas são mais parecidas do que diferentes e que suas diferenças não necessariamente devem afastá-las. 

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Será minha despedida, será dia dia de festa, dia de transbordar de amor e de mostrar muita gratidão por tudo o que o "ser catequista" fez por mim. 

Será um dia feliz, que antecederá muitos dias de amorosa saudade.




[Para ajudar a Casa do Menino Jesus também, clique aqui]



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Mais Médicos, Menos Corporativismo

>> segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Hoje começa o período de três semanas de acolhimento da primeira leva de médicos estrangeiros que vieram para o Brasil participar do programa Mais Médicos, do Governo Federal, que envolve diretamente os Ministérios da Saúde e da Educação. 

Trabalho na Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde,  responsável pelo programa no MS, e tenho acompanhado de perto, tanto pelos bastidores, quanto pelo que sai na mídia, o seu processo de consolidação. Aqui vai minha opinião, algumas informações importantes, e questionamentos para o futuro. Todos os dados aqui são públicos, ao alcance de uma "googlada", logo, não estou usando meu cargo para divulgar nenhum tipo de informação privilegiada.



Mais Médicos

O provimento e a fixação de profissionais de saúde, especialmente de médicos, em áreas remotas, de difícil acesso e de maior vulnerabilidade é tema de debate institucional há muito tempo - foi um dos debates que motivou a criação da Secretaria em que eu trabalho, que existe desde 2003.
Esses municípios são áreas censitárias 4 e 5, de acordo com a classificação do IBGE, e se concentram no interior, nas fronteiras, nos distritos sanitários indígenas e nas periferias das grandes cidades.

Antes do "Mais Médicos", uma das estratégias do Ministério da Saúde para minimizar esse problema foi a criação do Programa de Valorização do Profissional da Atenção Básica - PROVAB, que existe desde o ano passado e serviu de modelo para a operacionalização do Mais Médicos. O Governo Federal tentava atender, assim, a demanda dos gestores municipais de saúde que diziam não conseguir atrair ou fixar profissionais de saúde, mesmo oferecendo altos salários.

As manifestações de julho aceleraram o lançamento do Mais Médicos, que, além de pensar no provimento dos profissionais (bolsa federal para o profissional, subsídio para o município, contratação de médicos estrangeiros, acordos bilaterais com outros países), pensou também na formação desses profissionais no Brasil (e é aí que entra o MEC), e, de uma vez só, mexeu com estrutura da formação e do exercício profissional de um dos maiores lobbys corporativistas do país.

Menos Corporativismo

Pra falar de lobby corporativista, vou comparar a classe médica com a classe dos professores (da qual eu faço parte por formação, e isso já diz muita coisa). As duas são fundamentais para bons IDH's, para o desenvolvimento do país, são o mote das prioridades de toda campanha política: saúde e educação, são tão antigas quanto a organização humana em sociedade. Portanto, gozam do mesmo prestígio social e economicamente, certo? Claro que não.

Medicina, diferentemente da maioria das licenciaturas, é um curso caro. É um curso que requer laboratório, equipamento, que não dá pra se virar - ou pelo menos, em que ninguém "aceita" se virar - com um punhado de livros, giz e saliva. Quem faz medicina no Brasil? A criança que desde pequena sente vocação pra ajudar todo mundo que vê sentindo dor? A criança que cresce desejando fazer desse mundo um lugar melhor e com menos sofrimento? Claro. Desde que os pais dela possam pagar. Pagar uma faculdade que custa de 2 a 7 mil reais por mês, durante cinco anos. Ou pagar no mínimo três anos de educação continuada pra que ela possa entrar no vestibular do curso mais concorrido das Universidades Federais.

Filha de pobre, via de regra, não faz medicina . Faz licenciatura. (E quem está mudando isso, aos poucos, é outro programa desse governo: o ENEM).

O estudante de medicina se dedica exclusivamente (não trabalha pra se sustentar), é branco, jovem, cheio de sonhos e planos pela frente. No mínimo, ele espera ter, com sua profissão que deu tanto trabalho pra conquistar (não estou dizendo que não), um padrão de qualidadede vida tão ou mais confortável do que o que teve enquanto dependia de seus pais. Ir trabalhar no interior, numa periferia ou numa área indígena não se encaixa nesse padrão de vida, é claro.

Ok, doutor, o Governo não pode te obrigar a deixar o conforto do seu bairro nobre na grande cidade pra morar numa casa simples no interior, diagnosticando virose, verminose, dengue, enfim, ter aquela vida besta numa cidadezinha qualquer, longe do conforto, do prestígio e de tudo que papai e mamãe te ensinaram a valorizar tanto na metrópole.

Nem o governo pode te obrigar a isso, nem a sociedade pode te condenar por não querer isso pra sua vida. 

Infelizmente, nem toda profissão pode escolher isso. Um professor em começo de carreira - que também fez seu curso com dedicação, que também se esforçou pelo seu diploma, que também é essencial para a qualidade de vida da população - não gostaria de trabalhar ganhando R$8 por hora/aula, ou numa escola de zinco, ou ensinando alunos em risco social. Mas os municípios do interior não andam por aí oferendo 35 mil reais por um professor de português, e há que se colocar comida dentro de casa, não é mesmo? 

Mas o médico tem bala na agulha pra fazer lobby. Médico tem contato na imprensa, no governo, entre os empresários, na indústria farmacêutica. Médico faz parte do grupo formador de opinião, da elite culta, tem acesso a todos os meios de comunicação. Médico não se sujeita porque não precisa se sujeitar. E está certo em não se sujeitar. 

Mais alternativas

Então, o que fazer? A culpa é do município? A culpa é do município por ser longe de tudo (quem mandou ter uma cidade ali no meio do nada?) A culpa é do município que não atraiu indústria, desenvolvimento, o progresso brilhante em vermelho e amarelo num letreiro do Mc Donalds? O governo vai falar o que praquele município? "Olha, sinto muito, mas a sua população vai morrer de disenteria, de leishmaniose, de anemia provocada por solitária, de pneumonia, se continuar aqui. Eu sugiro que vocês saiam daqui a vão engrossar as filas dos hospitais das periferias urban... oh, wait, lá também os médicos não vão porque têm medo de serem assaltados. É, sinto muito, o problema é de vocês".

Não, né. Porque há alternativas no mundo que podem ser testadas aqui. Uma delas é a contratação de médicos estrangeiros. O governo a fez por dois modos: O primeiro, foi a adesão ao edital. Os critérios pra que médicos estrangeiros viessem foram três: 1) Exercer a medicina legalmente no seu país 2) Ser proveniente de um país com mais mil médicos por habitante que o Brasil  3) Ter conhecimento de língua portuguesa.

A esses médicos que aderiram ao edital, foi apresentada a lista de municípios que solicitaram médicos, e eles puderam escolher até seis opções. A maioria deles escolheu cidades de periferia ou mais próximas dos grandes centros, assim como os brasileiros, o que resolvia grande parte do problema de provimento, mas deixava ainda uma lacuna: Os municípios com 0 médicos, mais pauleira, mais escondidos, mais difíceis de se chegar, continuaram não sendo escolhidos.

A forma encontrada para preencher essa lacuna foi o acordo bilateral de contratação de médico, a princípio, firmado com Cuba.


Menos medo cósmico de Cuba

Em Cuba, a lógica "só filho de rico faz Medicina" não existe. A ELAM é financiada pelo Governo cubano - a "ditadura comunista", segundo esse texto vazio e histérico de Reinaldo de Azevedo, e acolhe estudantes de toda a América que queiram fazer Medicina, quase sem custos. Mas, como nada é de graça nesse mundo, em vez de pagarem com a moeda capitalista, pagam com compromisso político. 

O aluno formado na ELAM aprende que vidas são mais importantes que cifras. E o dinheiro que ele não paga pra se formar, o governo, que banca tudo, recebe de volta quando ele for trabalhar no exterior. Pra manter o governo, a própria escola, e formar mais gente que, fora de Cuba, nunca realizaria o sonho de se formar em Medicina.

(Pelo o que pude entender, é mais ou menos um serviço civil obrigatório: o governo te oferece um serviço público de qualidade, a universidade, e em troca você dá algum tipo de compensação ao governo. Comparar isso com escravidão é, no mínimo, irresponsável, pra não dizer de um extremo mau-caratismo e oportunismo midiático.)

Então, o acordo entre países é diferente do acordo entre país e profissional por um motivo muito importante: os profissionais que vêm independentemente escolhem, na medida do possível, onde querem trabalhar. O acordo bilateral não prevê isso. O Brasil oferece o seguinte acordo na OPAS: "preciso de profissionais que vão para onde EU preciso. Em troca, repasso o dinheiro diretamente ao governo que me oferecer esses profissionais nessas condições"

O único país que pode fazer isso é Cuba, claro. Porque a admissão na sua Escola de Medicina tem esse requisito: que o aluno se forme para sair em missão, e que devolva, como parte do seu salário, o gigantesco investimento que o país fez em sua formação - que a esse mesmo aluno não seria possível em nenhum outro lugar do mundo.

Mais Humanização

A humanização do atendimento médico no Brasil anda a passos de formiga e sem vontade. O grande lobby da indústria farmacêutica, das faculdades de medicina e das grandes fabricantes de tecnologia médica não tem o menor interesse em uma medicina mais simples. O lema é progresso, avanço, e isso se conquista com mais tecnologia (mais custos) e menos conversa. A formação humanista da ELAM é diferente. Ela investe na relação médico-paciente, na promoção da saúde e no acompanhamento periódico da comunidade - são esses os princípios da medicina de família, ou da atenção básica, que é a área específica em que os médicos estrangeiros vão atuar. 

Isso preocupa uma classe médica que se forma totalmente dependente de exames sofisticados e aparelhos de precisão milimétrica. Não que eles não seja necessários, mas são, em muitos casos, dispensáveis. A medicina humanizada mostra aos barões do avanço que saúde pode custar bem menos dinheiro e um pouco mais de atenção da equipe médica. E que a tecnologia deve sim ser usada em casos graves, delicados, críticos, mas que, com promoção da saúde, que é muito mais barata, o número desses casos pode ser diminuído drasticamente.

Menos especulação

Muitos de nós que estamos neste debate não têm envolvimento direto no problema. Os lugares-comuns que eu ouço demonstram um total desconhecimento da realidade desses "rincões", desses "pobres", muito menos da situação dos supostos "escravos" que estão vindo de Cuba. (Só porque você não se imagina saindo do seu país pra trabalhar em missão humanitária, mesmo ganhando "pouco" - porque 25 a 40 % de 10 mil reais pra morar em cidades com custo de vida baixíssimo é miserável! - não quer dizer que quem faz isso está sendo forçado, né?). Muitos também ignoram que os municípios que receberão médicos provaram ao Ministério que têm condições de oferecer dignidade para o médico exercer sua profissão, ou seja: estrutura  e equipe.

Não quero dizer que não podemos dar nossa opinião sobre o assunto, mas, uma vez que não estamos diretamente envolvidos - esses médicos não vão nos atender, não temos ideia de como é viver em Cuba - nossa responsabilidade sobre o que dizemos sobre o assunto é ainda maior. Não é feio admitir que não tem opinião formada. No meio de uma discussão, é bem melhor falar um honesto "não sei", do que reforçar especulações maliciosamente originadas na mídia, nas redes sociais, na internet de modo geral. 
E, se quiser mesmo participar, se informe. 

A equação "mais médicos" é difícil de ser resolvida, não há solução mágica que agrade a todo mundo. 
Esse programa, acusado de ser eleitoreiro - mesmo  ele sendo de base, de diretriz, de fundação, mesmo prevendo resultados a médio e longo prazo, mesmo querendo passar de política de governo para política de Estado - é fruto de muita vontade política, de uma mobilização nacional  que quer dar uma resposta às ruas. E isso não pode ser ignorado. Os fatos que expus aqui, e algumas das minhas opiniões, são o mínimo para uma reflexão mais profunda, que estou disposta a tentar fazer com quem se interessar pelo assunto.

***

Todos nós, envolvidos diretamente na execução do programa, temos em mente isto: é um momento histórico, uma virada decisiva na história da saúde pública brasileira. Conseguimos entender um pouco melhor esse sentido de missão, de trabalhar por algo maior do que dinheiro e prestígio.
(imagina a crise no capitalismo se todo mundo começa a trabalhar por ideal e pára de alienar seu tempo num emprego qualquer?)

Acredito que em algum tempo será possível ter os dois. Trabalhar por ideal e receber um pagamento justo por isso. Mas pra isso, essa quebra no "curso natural" das coisas que esse programa está promovendo agora é indispensável. Acredito nesse programa, torço pra que ele dê certo, pra que seja imitado em outras profissões, pela democratização do acesso aos cursos de Medicina, e pra que, num futuro próximo, a brincadeira da criança que coloca sua roupinha branca e sai pela casa medindo temperatura dos pais e dando balinha de remédio pra todo mundo possa virar profissão, não importando se sua família é de empresários ou de camponeses.

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#MeuPaiÉDesses

>> domingo, 11 de agosto de 2013

Papito sempre me cobrou um texto que nem esse aqui que fiz pra mamis. Ei-lo.

Meu pai sempre me carregou pra tudo que era canto, sob os protestos da minha zelosa (chata) mãe. Quando pequena, minha relação com ele era muito mais próxima do que a com a minha mãe. Aos oito anos, eles se separaram, e eu a culpei por me afastar do meu melhor amigo.

Lá pelos treze anos, me aproximei mais da minha mãe e pude ver de muito perto a transformação dela na mulher maravilhosa que ela é hoje. A imagem que tive do meu pai sempre foi mais estável. Não o enxergava como alguém passível de mudança, meu pai era um homem "acabado". Até os catorze anos, fomos muito próximos e muito parecidos. Quando minha carência de atenção ou minha teimosia excediam a paciência dele, ele me dispensava com um "Não" ríspido, que me fazia engolir o choro e me deixava um nó na garganta.

Na adolescência, o choro mal contido se libertou num ensaio de rebeldia. Meu pai viu a filha que ia chorar magoada no quarto ficar, responder, revidar, enfrentar e negar a sua autoridade de pai.

Então meu melhor amigo virou alguém com quem eu sequer falei durante uns seis meses.

A reconciliação veio aos poucos, depois de eu amargar um arrependimento ao ver que meus pais não esperavam mais nada de mim. Eu, que até então achava que me sentia pressionada a ser adulta, responsável, inteligente, me vi desesperada quando essa suposta pressão foi substituída por uma total falta de expectativa. 
Isso mais a lembrança constante da recente e, principalmente, inesperada morte do meu padrinho, primo e melhor amigo do meu pai, me fizeram perceber que eu não tinha tempo a perder para tomar a iniciativa de reconstruir minha relação com ele.

E assim, como o filho pródigo que à casa torna (eu, que sempre fui o irmão mais velho meio invejoso), reaprendi a falar com meu pai, abraçá-lo, beijá-lo, dizer "eu te amo", deixar que ele fizesse parte essencial da minha vida, que ele voltasse a ser meu maior exemplo.

Aos 16 anos fui aprovada no vestibular pra Letras na UnB, aos 18, num concurso público, aos 20, no mestrado em Literatura.

Apesar de ter seguido seus passos, meus motivos foram diferentes. E ainda restava em mim, ao pensar relação com meu pai, a necessidade de conciliar nossas grandes semelhanças e nossas irreconciliáveis diferenças.

Quando terminei o mestrado, pensei, e agora? Qual o próximo passo? Saí da sombra do meu pai, da estrada pré-trilhada, dos resultados conhecidos.

Cheguei a escrever no meu diário, em janeiro desse ano, quando tive a certeza de que não queria mais ser servidora pública, como ele:

[...] Como calar a voz do meu pai dentro da minha cabeça? Como eu tenho, ao mesmo tempo, os complexos de Édipo e de Electra?
Meu pai é um alter-ego meu. Mas temos coisas diferentes. Quando eu amo essas coisas em mim, tenho que detestar nele. Nunca vou poder amar os dois ao mesmo tempo. Quando eu acho que estou certa, tenho que desmerecer a opinião dele. Quando ele está certo, significa que a errada sou eu, e isso é o mesmo que dizer adeus à minha autoestima. 
Na adolescência, quando a exaltação do meu ego atingiu seu estado máximo, anulei meu pai. Num mundo em que ele tivesse razão sobre tudo, eu não teria nenhuma chance de crescer.  (porque meu pai não é o tipo de crítico que deixa você tentar outra vez depois do primeiro erro)
Meu pai, meu ex-namorado, meu orientador, três figuras de autoridade masculina que têm uma influência enorme no que eu sou hoje.
Eles me forçaram  a ser rebelde, mas a opinião deles sobre o que eu faço é, sim, muito importante! Minha rebeldia é um jeito de tentar  me afirmar diante disso. 
A resistência a isso tem que ser minha. Entendo minha mãe cada vez melhor. Mas eu não posso pedir divórcio do meu pai. Tenho que aprender a lidar com isso.
Eu só queria descobrir o que em mim sou "eu" e o que é apenas negação do outro ou do que ele espera que eu seja - pra que assim eu faça minhas escolhas conscientemente e não apenas pra afirmar "você não manda em mim", como aos quinze anos.

Meu grande aprendizado desse ano foi trabalhar pra eliminar essa concorrência e essa vontade de subjugar os outros (meu pai, os homens) provando que eu tou certa - Freud explica. Fiz isso entendendo que somos pessoas diferentes, mas não opostas. Que estamos em processo constante de mudança e evolução - sim, ele também.

Somos diferentes não por nossa essência, mas pelas escolhas que pude fazer, e fiz. Escolhas que ele mesmo me proporcionou - como a última, de ir pra Portugal fazer doutorado. Estou dando um passo no escuro, um "lea
p of faith". Mas sei que ele e minha mãe são minha rede de proteção, e têm plena confiança em mim. Sou grata por isso.

Pai, por mais que eu lamente todos nossos desentendimentos dos meus "negros" quinze anos, sei que eles não foram em vão pelas escolhas que aprendi a fazer a partir dali. Lamento que tenha custado tanto. Mas passou.



Obrigada. Por tudo. Você é o melhor pai que eu poderia ter tido e, graças a Deus, tive e tenho. Amo você. 
Feliz dia dos pais.


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Fantasmas de domingo

>> quinta-feira, 18 de julho de 2013

É domingo à noite, e todos que se recusam a ver o cortejo fúnebre do fim de semana na televisão estão no bar. Alguns comemoram a vitória, apertada, é verdade, do seu time sobre o grande rival desde a seis da tarde; outros recém chegaram e suas vozes só agora começam a ser alteadas pelo álcool dos copos de cerveja virados.

Ela entra no bar e sem hesitar procura o canto mais vazio para se sentar. Ela não está à espera de ninguém. Ao menos de ninguém que virá, e clara está a enorme diferença entre uma espera e a outra.
Ela adivinha de onde vêm as vozes que rumorejam ao seu redor: grupos de jovens universitários, casais entediados que se ignoram mutuamente
pelo celular, um trio de homens de meia idade que falam de obscenidades e negócios, se é que há diferença, e um velho de cabelo grisalho e barba branca, que bebe vinho e não cerveja, que tem nas mãos um livro e não um celular.

"Esse serei eu daqui a trinta anos. Ou menos. Ou agora. O chopp me salvou da identificação completa".

Se não estivessem tão absortos em suas próprias conversas, poderiam se perguntar aqueles assíduos frequentadores o que faz ela aqui sozinha, a essa hora de domingo? Para onde aponta esse olhar vago e perdido? Que pensamentos envolvem esses cabelos cacheados? O que desejam essas mãos que ansiosamente acenam para o garçom?

Mas eles não se perguntaram, não se importam. E se perguntassem, não ouviriam resposta alguma: ela não as têm, as respostas. O que ela tem, e em grande número, são dúvidas.
E agora? Na última semana ela foi visitada por dez anos de passado. Não faltaria quem risse ao ouvi-la falando "tenho dez anos de passado". Dez anos de passado encarnado em três homens, como os fantasmas de Dickens - qual a lição de moral do final deste conto? Ela não sabe. O que sabe é que o passado se recusa a ser um refúigio seguro. O futuro se aproxima a cada dia, e, apesar da sua manifesta e aparente ansiedade, o que ela tem é medo.
O passado a distrai da sua verdadeira aflição: o tempo-será. Foram precisos três fantasmas para que ela entendesse isso, se é que entendeu. três fantasmas, uma semana, meio litro de chopp e um velho tomando vinho no bar domingo à noite.

Mas ela entendeu. Vai pedir a conta, voltar pra casa e, antes de dormir e receber mais uma segunda-feira, um pensamento percorrerá sua mente como um feixe de luz: medo... não... mais...

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Cine Clube Cult #4

>> terça-feira, 16 de julho de 2013

(Confira os posts sobre cinema anteriores aqui, aqui, aqui e aqui.)

Hoje falo sobre três documentários a que assisti no último mês e que despertaram meu interesse pra esse gênero não muito comercial e sem apelo no chamado grande público (aposto que você pode contar nos dedos a quantos documentários já assistiu, espontaneamente, no cinema - trechinho de documentário que por acaso tava passando na TV quando você ligou não vale!)


O primeiro deles é A ponte, de 2005. Durante um ano câmeras gravaram a movimentação na Golden Gate, em São Francisco, e registraram mais de 20 suicídios. Acompanhamos os movimentos de cada um: chegar na ponte, hesitar, ou decididamente atravessar as grades de segurança, depois se jogar - ou ser impedido, ou desistir. O documentário foi concebido de maneira que cada suicida virasse um personagem: os depoimentos de parentes e amigos de cada um dão contornos humanos ao corpo que assistimos cair. Assistimos e não podemos fazer nada para impedir. O documentarista registra, mas não interfere. Não aciona um alarme, não disca 911. 

A sensação de quem assiste não pode ser outra que não a de angústia. O suicídio é um tema que suscita questões existencialista no mais pueril dos homens: o que leva alguém a tirar a própria vida? eu tiraria a minha? o que me prende à vida? o que me impede de morrer? é covardia? é coragem? (ser ou não ser, eis a questão! existir ou não existir?). Os depoimentos de quem ficou também são angustiantes: eu poderia ter evitado! eu poderia ter ajudado! eu poderia ter impedido! eu não fiz o suficiente, não amei o suficiente, não me importei o suficiente, não... A vida interrompida deixa pra trás diálogos inacabados que o documentário tenta reconstituir.

Essa angústia também a encontramos em Elena, mas de forma diferente. Elena é leve, sutil, uma busca apaixonada que se alimenta de passado. Tudo no filme remete a essa leveza: o foco da câmera, a lindíssima trilha sonora, o balé de Elena, o balé de Petra, o fluir da água do rio... Tudo é leve como a existência que é até não ser mais.

Elena se recusa a ser medíocre naquilo que ama, naquilo que entende como vida: a arte. Elena se recusa a não ser capaz de realizar seu sonho. Petra, que também entende a arte como vida, usa a arte - em forma de documentário - pra estilizar, modelar, e entender sua busca pela irmã mais velha que agora é ausência.
Petra filma a ausência de Elena: Elena não está. Elena não mais é.
É um filme belo de amor e saudade, e que fala do poder transformador da arte - do que é ser artista, do que é entender o mundo pela arte, do que é fazer da arte o principal mediador entre o eu e o mundo.


O terceiro documentário é Dossiê Jango, que também é a história de uma ausência. Em Dossiê Jango o que se vê é um Brasil que poderia ter sido e não foi. A primeira metade do filme é uma pergunta: e se? E se Jango não tivesse sido deposto? E se o golpe não tivesse acontecido? E se Jango conseguisse fazer as reformas de base que propôs? E se...? Que Brasil seríamos? (Talvez a mãe de Elena pudesse ter sido atriz em vez de ter que se esconder da ditadura).

Nas cenas do documentário vemos um futuro que nos foi negado, roubado - deposto. Assassinado? A narrativa do documentário, que tem apoio da Fundação João Goulart , que se intitula "dossiê", reúne e organiza uma série de fatos que apontam para a comprovação de uma hipótese: João Goulart foi criminosamente eliminado por seus opositores. Se não consegue comprovar a hipótese, ao menos tem o êxito de fixar a hipótese como plausível: João Goulart pode ter sido assassinado. Há que se investigar.

Além disso, e, mais importante que isso, é o levantamento cuidadoso de uma época da nossa história que é sistematicamente silenciada, difusa: um retrato em sépia. Pra quem nasceu na democracia, como eu, o documentário preenche uma lacuna deixada pela escola que não soube - ou não quis - trabalhar com profundidade o que aconteceu na história dos presidentes entre JK e Color.

(No imaginário do jovem de 25 anos médio brasiliense figuram com destaque nomes como Getúlio Vargas e JK. Jânio Quadros e João Goulart são a mesma pessoa, um golpe aconteceu em 64, em 68 o AI-5 endureceu as coisas, nos anos 80 veio a redemocratização, Sarney foi o primeiro presidente civil em vinte anos, Color o primeiro eleito, depois FHC, Lula, Dilma e fim.)

Dossiê Jango tem um peso diferente de acordo com a geração que o assiste. Pra minha geração, fica o sentimento de que o país em que vivemos teve seu futuro roubado. De que para recuperarmos esse futuro, ou a possibilidade de tê-lo, gente lutou, resistiu, morreu.

E eu com isso?

Qual o meu lugar nessa história? Pelo que eu luto? A que forças resisto?

***

O gênero documentário utiliza arquivos de imagens, documentos reais, depoimentos e entrevistas autênticos, mas nem por isso deixa de ser estilizado. Há um argumento, uma direção, um fio narrativo que antecipa algumas conclusões do expectador, que indica trilhas de aparente dedução. Mas não é menos verdade por isso. Talvez, aliás, (e aqui roubo a frase a muita gente) só exista verdade na ficção.

O que tem me atraído nesses filmes, nesses três especificamente, é o grau de abertura para uma resposta - o expectador é muito mais livre para completar de sentido os fatos expostos nos documentários.
É um convite ao pensamento e à sensibilidade, a uma tomada de posição, à formação de opinião.

Aceito o convite, e o amplio a quem venha a ler esses breves comentários.

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avulsas #6

>> domingo, 14 de julho de 2013

Um livrinho pra ler e reler em diferentes momentos da vida:
Cartas a um Jovem Poeta, Reiner Maria Rilke. A minha carta favorita sempre será a sétima. Segue um trechinho.

Roma, 14 de maio de 1904

Não se deixe enganar em sua solidão só porque há algo no senhor que deseja sair dela. Justamente esse desejo o ajudará, caso o senhor o utilize com calma e ponderação, como um instrumento para estender sua solidão por um território mais vasto. As pessoas (com o auxílio de convenções) resolveram tudo da maneira mais fácil e pelo lado mais fácil da facilidade; contudo é evidente que precisamos nos aferrar ao que é difícil; tudo o que vive se aferra ao difícil, tudo na natureza cresce e se defende a seu modo e se constitui em algo próprio a partir de si, procurando existir a qualquer preço e contra toda resistência. Sabemos muito pouco, mas que temos de nos aferrar ao difícil é uma certeza que não nos abandonará. É bom ser solitário, pois a solidão é difícil; o fato de uma coisa ser difícil tem de ser mais um motivo para fazê-la. Amar também é bom: pois o amor é difícil. Ter amor, de uma pessoa por outra, talvez seja a coisa mais difícil que nos foi dada, a mais extrema, a derradeira prova e provação, o trabalho para o qual qualquer outro trabalho é apenas uma preparação. Por isso as pessoas jovens, iniciantes em tudo, ainda não podem amar: precisam aprender o amor. Com todo o seu ser, com todas as forças reunidas em seu coração solitário, receoso e acelerado, os jovens precisam aprender a amar. Mas o tempo de aprendizado é sempre um longo período de exclusão, de modo que o amor é por muito tempo, ao longo da vida, solidão, isolamento intenso e profundo para quem ama. A princípio o amor não é nada do que se chama ser absorvido, entregar-se e se unir com uma outra pessoa. (Pois o que seria uma união do que não é esclarecido, do inacabado, do desordenado?) O amor constitui uma oportunidade sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo, tornar-se um mundo, tornar-se um mundo para si mesmo por causa de uma outra pessoa; é uma grande exigência para o indivíduo, uma exigência irrestrita, algo que o destaca e o convoca para longe. Apenas neste sentido, como tarefa de trabalhar em si mesmos ("escutar e bater dia e noite"), as pessoas jovens deveriam fazer uso do amor que lhes é dado. A absorção e a entrega e todo tipo de comunhão não são para eles (que ainda precisam economizar e acumular por muito tempo); a comunhão é o passo final, talvez uma meta para a qual a vida humana quase não seja o bastante. É aí que os jovens erram com freqüência, gravemente: pelo fato de eles (faz parte de sua natureza não ter paciência alguma) se atirarem uns para os outros quando o amor vem, derramando-se da maneira como são, em todo o seu desgoverno, na desordem, na confusão... Mas o que deve resultar disso? O que a vida deve fazer desse acúmulo de equívocos a que eles chamam de união e gostariam de chamar de sua felicidade? E o futuro? Então cada um se perde por causa do outro e perde o outro e muitos outros que ainda desejariam surgir. Perdem-se as vastidões e as possibilidades, troca-se a aproximação e a fuga de coisas quietas, cheias de pressentimentos, por um desespero infrutífero do qual nada mais pode resultar; nada mais do que um pouco de náusea, desapontamento e pobreza, e com isso a salvação em uma das muitas convenções que estão disponíveis em grande número, como abrigos para todos nesse caminho extremamente perigoso. Nenhuma região da experiência humana é tão munida de convenções quanto essa: salva-vidas dos mais diversos, botes e bóias; refúgios de todos os tipos foram criados pela compreensão comum, pois ela estava inclinada a considerar a vida amorosa como um prazer, por isso tinha de torná-la fácil, barata, inofensiva e segura, como são os prazeres públicos. De fato muitos jovens que amam de modo falso, ou seja, simplesmente entregando-se, sem preservar a solidão (a maioria não passará nunca disso), sentem a opressão de um erro e querem, de uma maneira própria e pessoal, tornar vivida e fértil a situação em que se precipitaram. Pois a sua natureza lhes diz que as questões do amor, de tudo o que é importante, são as que menos podem ser resolvidas abertamente, segundo um acordo qualquer; são perguntas íntimas feitas de uma pessoa para outra, perguntas que exigem em cada caso uma resposta nova, especial, apenas pessoal. Mas como é que eles poderiam encontrar uma saída em si mesmos, do fundo de sua solidão já desperdiçada, eles que se atiraram, que não se delimitam nem se diferenciam, e que portanto não possuem nada de próprio? Os jovens tomam atitudes a partir de um desamparo comum e, quando querem evitar de boa vontade a convenção que se anuncia (por exemplo o casamento), caem nos braços de uma solução menos explícita, mas igualmente convencional e mortal. Pois tudo o que existe em torno deles é convenção; onde quer que se trate de uma comunhão precipitada e turva, todas as atitudes são convencionais. Toda relação resultante de tal mistura possui a sua convenção, mesmo que seja pouco usual (ou seja, imoral em sentido comum). Até a separação seria um passo convencional, uma decisão ocasional e impessoal sem força e sem frutos. Quem observa com seriedade descobre que, assim como para a morte, que é difícil, também para o difícil amor não se reconheceu ainda nenhum esclarecimento, nenhuma solução, nem aceno, nem caminho. Para essas duas tarefas, que carregamos e transmitimos secretamente sem esclarecer, nunca se achará uma regra comum baseada em um acordo. Contudo, à medida que começamos a tentar a vida como indivíduos, essas grandes coisas se aproximam muito de nós, os solitários. As exigências que o difícil trabalho do amor impõe ao nosso desenvolvimento são sobre-humanas, e nós, como iniciantes, não podemos estar à altura delas. Mas se perseveramos e assumimos esse amor como uma carga e um período de aprendizado, em vez de nos perdermos em todo o jogo fácil e frívolo atrás do qual as pessoas se esconderam da mais séria gravidade de sua existência, talvez se perceba um pequeno avanço e um alívio para aqueles que virão muito depois de nós; e isso já seria muito. No entanto, só chegamos no máximo a considerar objetivamente e sem preconceitos a relação de um indivíduo com outro indivíduo, e nossas tentativas de viver tais relacionamentos não têm nenhum modelo diante de si. Mesmo assim há, na própria passagem do tempo, algo que ajuda a nossa iniciação hesitante.

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Epifania

>> quinta-feira, 11 de julho de 2013



A imagem de um amigo é adequada: estamos (me sinto) em um grande lago. Sem correnteza, sem ondas, sem quedas. Parada, sob o sol, sinto cada dor latejando. Cada desejo pulsando. Sinto tudo. Me debato na esperança de que o movimento me distraia da dor, mas não há para onde ir: nado em círculos e, cansada, paro de novo, sentindo mais pungentemente a dor de antes.

Essa água é terapêutica, mas a longo prazo. O esforço é da mente. É ela que tem que desatar, um a um, os nós do meu entendimento. Penso. Penso. Penso. Sinto. Respiro e penso. Encontro a solução para o diagnóstico de carência, solidão, ansiedade: tempo. Resistência. Fortaleza. 

Crescer dói. Ouço o romper do casulo, da casca da semente. A carência passa, a solidão passa, a ansiedade e angústia também.

Estou pronta. O destino pode abrir a represa.

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Notícias do almoço - por Marília Ferreira

>> segunda-feira, 1 de julho de 2013

- Ei mãe, aconteceu uma coisa engraçada hoje: um homem quebrou um copo no restaurante e conseguiu um corte profundo na mão.

- E o que fizeram?

O cara só ficou lá, sem fala, olhando pra mão e com cara de desespero. Parecia que nunca tinha visto sangue na vida. Logo as pessoas começaram a olhar, a toalha de mesa ficou toda vermelha, e o vermelho pingava no chão. Os garçons se aproximaram, oferecendo ajuda. O homem nada dizia, só ficava mais e mais afoito.

- Chamem um médico! O SAMU! Tirem-no daqui! Alguém faça alguma coisa! – Diziam os outros fregueses. Até que um senhor, dizendo ser médico, foi até a mesa onde tudo acontecia e tentou analisar o corte, mas o homem parecia estar tendo um ataque de pânico, e apenas balançava a mão, apontava pra si mesmo, salpicando toda sua roupa de escarlate. O tal médico tentou acalmá-lo, bem como todos os que estavam em volta, mas ninguém conseguia. 

- É cada gente esquisita por aí! O homem fez esse estardalhaço todinho só por causa de um cortezinho? Nada que uns pontos não resolvam! E o que é um pouco de sangue, meu povo?  Ê, homem sensível!

- É, mãe, tava todo mundo lá comentando isso. O homem até começou a ficar de uma cor esquisita, e desmaiou!

- Tinham era que sair de perto, deixar o homem respirar.

- Engraçado você dizer isso, mãe.

- O que é?

O filho aumentou o  volume da TV, e ela ouviu a voz do âncora do noticiário da noite dizer:
"Homem morre em restaurante. Jorge, de 42 anos, almoçava sozinho quando se engasgou. A fim de pedir por socorro, quebrou um copo na mesa, mas acabou se cortando. Aparentemente todos se deixaram distrair pela quantidade de sangue proveniente do corte, socorrendo-o apenas para estacar o sangramento. Quando a ambulância chegou, ele já havia morrido sufocado, enquanto os presentes enrolavam sua mão com gaze  e comentavam que só foi possível cuidar do ferimento quando Jorge desmaiou. '- Não sei quem chamou a ambulância, está tudo sob controle agora!' - disse um garçom aos paramédicos, que apenas cobriram o corpo com um lençol branco."

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