53 anos de Bras Ilha

>> domingo, 21 de abril de 2013

"Não há mentiras nem verdades aqui, só há música urbana".

Brasília, personagem favorita da minha ficção. É difícil falar de você sem repetir clichês. Na definição de Italo Calvino: "A cidade é redundante: repete-se para fixar alguma imagem na mente."

Sonho místico. Mármore. Céu. Curvas e retas, formas geométricas. Tudo isso é você, Brasília. Seus setores, tão difíceis de entender pra quem vem dos puxadinhos urbanos do resto do Brasil, se refletem no seu povo. Sua gente é setorizada, seus grupos sociais - suas "tribos", tão anos 90! - são ilhas. E não é só jogo de palavras.

Navego no mar de céu entre seus grupos, conheço seus ricos, seus pobres, e a sua grande e confusa classe média. Repito seus sensos comuns pra que eles ganhem a solidez do seu mármore. Construo os estereótipos  para que meus filhos possam quebrá-los.
Sua abóboda celeste, dando a ilusão de liberdade, nos aprisiona no infinito do seu horizonte. É preciso sair pra te entender melhor. É preciso sair pra te escolher. É preciso sair pra não sentir teu mármore como peso, pra entender que seu ascetismo não é esnobe, que a sua secura não é castigo. É preciso sair pra entender que se pode sair, que outro estilo de vida é possível que não o que criaram pra você.

Ao regressarmos, entendemos que você é jovem, muito jovem! E que a imobilidade do ar é aparente: nas tuas veias subterrâneas há vida, e vida que pulsa! E que há canais que ligam profundamente seus grupos: eles têm em comum a experiência em te enxergar além da superfície, além das manchetes, além do sonho místico, além do ideal desumanizado, além da política espúria, além da esperança burocratizada, rubricada, carimbada, desviada.

Brasília, ilha do brasil, arquipélago de gentes, no seu aniversário, te desejo uma esperança ativa. Te desejo mobilidade, canto de cigarras, correnteza no lago, o ecoar dos sinos, passos largos de uma legião de candangos! E que aqueles que procuram em você algum amor - e não todo o poder - o encontrem.
Que aqueles que procuram em você algum amor, se encontrem. 

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Revolução

>> sábado, 20 de abril de 2013

Acho engraçado esses defensores incondicionais da gramática normativa da língua portuguesa. Eles tratam a língua como se ela fosse a Verdade absoluta, um núcleo brilhante de pureza ao qual o homem comum nunca terá acesso, do qual ele só pode enxergar uma sombra difusa entre maneirismos, anglicismos e topicalizações.

Ignoram eles que essa língua, de pura, não tem nada: se corrompeu foi cedo! Enquanto mantinha a pose sisuda ao lado dos mais poderosos, confraternizava alegremente com quem a quisesse usar. 

Sonho com o dia do primeiro pronunciamento do Ministro de Educação e Cultura da Revolução que deporá magnatas das petroleiras, latifundiários, toda a espécie de gente que lucra com a exploração do poder do medo e da alienação social, e de seus respectivos porta-vozes políticos.

"Aí, perdeu, playbozada, quem manda agora é nóis! No novo regime, tá abolida a segunda pessoa do plural., e "tu" sempre vai conjugar na forma do que antes era a terceira pessoa do singular. Ficam declaradas como marginais essas tais MPB e Bossa Nova, e o RAP é o nosso novo estilo musical pra exportação. Neguim que for pego usando mesóclise e ênclise vai ser hostilizado socialmente: tá mais que permitido corrigir o coleguinha que usar um "amo-te" despudoradamente!
Aba reta e calça larga é o último grito da moda
entre a nova elite paulistana.
A partir de agora, tanto faz escrever com certeza ou concerteza (mas lembrando ainda que o m vem só antes de P e B, isso aqui não é anarquia!). O mesmo vale pra em cima ou encima."

Novos dicionários e novas gramáticas seriam imediatamente impressos, os primeiros contendo os (agora) reais significados de "cana", "bagulho", "fita" e "rolo" e acrescentando neologismos como "mocó" e "treta".

As escolas abririam turmas especiais (afinal, o regime saberia que toda fase de adaptação é complicada) pras senhoras que apresentassem uma extrema dificuldade em falar "pra" em vez de "para", "tisoura" em vez de "tesoura" e em construir sentenças (agora) gramaticalmente corretas como "Os filhos eles dão muito trabalho" ou "É um absurdo nós ter que lavar os própio vaso".


E, enquanto se esforçassem pra se adequar ao novo sistema, ainda que contassem com uma grande desvantagem em relação à grande parte da população que já saberia essas regrinhas de cor, os caras (porque não se usa "senhor" no novo regime!) que achavam antes que a língua era uma dama distinta e fiel, talvez conseguissem entender que, afinal, ela fecha com quem tem mais poder.

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Coletivo 201

>> quinta-feira, 18 de abril de 2013

Todo dia ela pegava o mesmo ônibus pra percorrer o trajeto de 30 quilômetros entre o trabalho e a sua casa.

Fazia isso há tanto tempo que a pequena população do ônibus já lhe era familiar. Ao entrar, cumprimentava o.motorista e o cobrador, os mesmos naquele horário desde que ela conseguia se lembrar. Eram mais que colegas de trabalho, pareciam ser amigos unidos até na hora de flertar com das meninas - coisa que as alianças de prata na mão direita do primeiro e dourada na mão esquerda do segundo não pareciam atrapalhar. 

Ao cair da noite, presa em intermináveis engarrafamentos - essas obras que não terminam nunca! - quando a vista começava a doer, obrigando-a a desistir da leitura, ela gostava de se distrair inventando as histórias daquelas pessoas com quem dividia essas duas horas diárias. Suas leituras eram sempre amenas - algum best-seller do momento, histórias românticas de meninas como ela, só que ricas, mágicas ou poderosas. Alguns passageiros mais aplicados carregavam sobre o colo pesadas apostilas de concurso. Sempre reparava numa jovem, da mesma idade que ela, que só lia clássicos no ônibus: Goethe, Shakespeare, Dostoiévski. Se perguntava se ela era uma dessas pessoas que têm vergonha de ler determinado tipo de livro, e por isso os disfarça com uma capa "séria".

Havia as estagiárias, ainda com o crachá dos seus órgãos e e o material escolar da escola ou faculdade. Os senhores de meia idade barrigudos e carecas se pareciam todos, e, não raro, estes lançavam seus olhares libidinosos e nostálgicos às estagiárias. Seu olhar sempre se enternecia ao olhar pras senhorinhas que lhe lembravam uma avó bondosa e sábia, como a Dona Benta do Sítio, e contrastavam com a irritação causada pelas senhoras que reclamavam aos berros e indignadas que os homens (que absurdo, cada marmanjo!) não lhes cediam lugar sentadas -  ao que um porta-voz masculino respondia "Não queriam direitos iguais? Pois bem, senta quem chega primeiro." 

A código de ética do coletivo diz que quem teve a sorte de ir sentado deve se oferecer pra carregar as bolsas e mochilas dos menos afortunados (ou mais atrasados) que vão em pé. Ela se oferece pra carregar a bolsa grande, cor de mostarda dessa senhora. Ao que ela responde "não, querida, obrigada". Não é que a bolsa não lhe pese: a senhora tem medo de ser roubada - não seria a primeira vez.

Num desses dias de chuva em que ninguém abre janela por medo de se molhar, e todos respiram o mesmo ar por muitos minutos, uma menina, de uns dezessete anos, que ia em pé depois de ceder seu  lugar a uma grávida de uns oito meses, desmaiou. "É jejum", disse alguém, "foi falta de ar", opinou outro. Uma senhorinha com rugas de vivida sentenciou "é menino", e os palpites pararam por aí. 

Quando estava triste, ela gostava de encostar a cabeça na janela do ônibus e pensar sobre a forma rude com que a vida lhe tratara até ali. Sempre que estava perto de um pensamento mais elucidativo, fruto de uma reflexão profunda, sucumbia ao sono despertado pelo vai-e-vem do coletivo e perdia assim sua epifania. Mais de uma vez dormiu a ponto de perder sua parada, e ter que voltar o caminho a pé. 

Às vezes, quando o motorista cometia alguma imprudência no trânsito, ou o ônibus quebrava no meio do caminho, ou ainda quando, na estação chuvosa do ano, ela chegava em casa molhada como quem estivesse a descoberto, ela pensava em culpar o sistema, acompanhar de perto as licitações, registrar sua reclamação na ouvidoria do governo.

"Nada disso", concluía. "O jeito é ganhar mais dinheiro, comprar meu carro e sair logo daqui." 

E assim se livraria do barulho, do assento duro, dos homens grosseiros, dos cobradores mau-humorados, dos atrasos,  da fumaça cinzenta, da chuva, do sol.
Se livraria dessa vidinha mais ou menos, mal-cheirosa, apertada, abafada, desconfortável.
Se livraria do coletivo.

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100 metros rasos

>> quarta-feira, 17 de abril de 2013

O homem mais rápido do mundo não consegue vencer na maratona.

***

"Você é muito precoce", é a frase que ela mais escuta de quem acaba de conhecê-la. "Já formada, já mestre, já concursada, já viajada? Você é muito precoce!"

Esse "precoce" vem com uma pontinha de recalque, mas com uma conotação positiva. Há um "parabéns" implícito nessa exclamação. 

Por muito tempo ela acreditou que merecia esse parabéns implícito, que ser precoce era uma coisa boa.

Ser rápido - impulsivo, decidido, corajoso - é bom quando as transformações também são assim, rápidas. Mas - a vida adulta faz questão de lembrar-lhe todos os dias - viver essa vida comum do cidadão médio é uma prova de resistência. Resistência à mediocridade alheia - e à própria -, resistência às mais diversas expectativas frustradas, resistência a situações e pessoas desinteressantes e desinteressadas. E resistência a tudo isso sem a garantia de ser o primeiro a chegar (aonde?) no final, sem a garantia, ao menos, de que se chegará a esse final.

Acho que essa capacidade de resistir vem quando se demora mais - o tempo certo, talvez? - pra se vencer cada etapa da vida. Ser precoce implica uma falta de inteligência emocional que agora me faz falta. Sinto vergonha de admitir que, hoje, bem mais velha, ainda sofro com as palavras "obrigação", "autoridade" e "disciplina" (e com tudo que elas representam) do mesmo jeito que sofria aos 15 anos.

(e aqui "ela" e "eu" nos misturamos: a Bruna que narra, que é discurso e memória, e a Bruna que vive, é ação e sensação - somos duas que se observam e passam longas horas discutindo que rumos tomar a partir de agora. A Bruna que age não vinga no mundo adulto onde as coisas só existem "a longo prazo", a Bruna que pensa não realiza seus planos tão bem arquitetados)

Ela agora se vê agindo como uma daquelas pessoas que sempre detestou: que só reclama da vida, pra quem nada está bom, pra quem nada é suficiente, culpando o mundo pela sua total inabilidade de agir com planejamento e modéstia. A ambição de ser grande, verdadeiramente grande - e a consciência de não o ser - amarguram o seu riso, a cada dia mais irônico e sarcástico.

Se ela fosse um personagem, eu faria dela um romance. Se ela fosse outra pessoa, eu faria um discurso cheio de clichês de autoajuda. Tudo talvez se resolvesse se ela fosse outra pessoa que não eu - só eu, na minha esquizofrenia discursiva, na minha megalomania egoísta, na minha covardia impotente.

Olho ao redor e vejo pessoas que sentiram tudo o que sinto, mas não sofrem mais. A diferença entre nós? Maturidade. Experiência nesse tipo de crise existencial, talvez. Desapego. Ou então alguma coisa muito, muito preciosa que faça calar a voz interior que sussurra "você não está feliz".

Habituada a sair vencedora de suas provas de 100 metros rasos, na maratona ela percebe pela primeira vez o mundo que há em volta do caminho - os apoiadores, a vista da cidade, as pessoas que torcem, os que lideram à sua frente e o pelotão que a cerca.
Essa percepção é inteiramente nova, e de alguma forma lhe dá forças para, ainda que lhes doam os pés, ainda que lhe queime o sol, ainda que ela não esteja na frente, continuar. Cada passo é um ato de fé no que há depois da linha de chegada.

Entre a megalomania (meu problema é o maior do mundo!) e a insignificância (sou só mais uma pessoa insatisfeita num mundo de pessoas insatisfeitas), penso que precoce mesmo é essa capacidade de me enxergar, me questionar e desvendar os truques que eu uso pra enganar a mim mesma. É essa consciência de quem eu sou - e de quem não sou - que não me deixa fugir do desassossego que essas linhas encerram. E é pra aguçar essa consciência que me experimento a mim mesma nessas linhas.

E assim, por hoje, valeu a pena correr.

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