Hoje fiz meu BC. Meu
big chop, que eu só descobri que tinha esse nome semana passada, quando googlei "transição capilar".
Foi preciso percorrer uma longa estrada capilar para chegarmos até aqui. Compartilho esse caminho pra quem tiver curiosidade, e porque, por mais bobo que pareça, é uma história que acho importante contar pra mim mesma.
Sou negra, meu cabelo é crespo. Ele cresce e enrola, é bem fininho, e bem cheio. Nas minhas fotos de criança só apareço com ele naturalmente solto quando estou em casa. Pra passear e pra ir pra escola, mamãe sempre prendia, de formas diferentes, mas puxando bem a raiz pra ficar esticadinha e deixando um rabinho (ou vários) cacheadinhos. Fazia o mesmo com o cabelo da minha irmã mais nova, que era um pouco mais crespo. Pentear o cabelo de nós duas devia dar uma trabalheira danada pra pobre da minha mãe. Quando eu tinha cinco anos, uma tia, que era cabeleireira, apareceu com uma solução mágica pra todos os problemas cabeludos dela: um alisamento super eficaz que era inofensivo até pra crianças. Seria muito mais prático pentear nossos cabelos se eles fossem lisos.
Fizemos o alisamento indicado pela minha tia. Eu com cinco, minha irmã com três anos, que passou uma versão "mais fraquinha". Resultado: cabelos lisos, escorridos, lisérrimos, que saíram inteirinhos nas nossas mãos.
A queda capilar foi tão grande nas duas, que o único remédio foi cortar bem curtinho. Mamãe aprendeu a não ouvir mais o pitaco da tal tia, mas assim que o nosso cabelo começou a crescer, adotamos um novo alisamento, dessa vez mais fraco, como o nome de "relaxamento" (como se nossos cabelos fossem estressados, rs) e só aplicávamos na raiz. Quando eu voltei a passar química no cabelo, eu devia ter uns oito anos, tava na terceira série. Nesse meio tempo, mamãe também virou cabeleireira, e ela mesma aplicava os produtos no nosso cabelo.
Eu nunca fui vaidosa. Morria de preguiça de pentear o cabelo, fazer hidratação e o diabo a quatro. Então, o relaxamento que eu fazia sempre que mamãe dizia que a raiz tava muito crescida, era basicamente a única coisa que eu fazia no meu cabelo. De resto, era lavar, passar condicionador, "creme do potão", como a gente chamava aquele skala, ou então o yamasterol, trim, ou tudo junto, puxar a raiz com a escova e prender. Usava o cabelo partido ao meio e preso.
Não é que eu não quisesse ter um cabelo bonito. Eu só queria ter nascido com ele. Me parecia no mínimo injusto eu ter que alisar, hidratar, modelar etc o cabelo pra ele ficar bonito, enquanto minha coleguinha loira do cabelo liso da escola simplesmente acordava, passava um pente e vinha pra escola, linda. Fosse qual fosse o resultado, eu queria ter o mesmo trabalho que ela pra "arrumar" o cabelo - nenhum.
Então, eu vivia conformada com o meu cabelo feio e sem nenhum atrativo especial. Odiava todo e qualquer trabalho que ele me dava. E nos dias que eu realmente queria parecer bonita, pedia pra minha mãe escovar. Ficava arrasada quando ela não podia e eu tinha que ir com o cabelo feio de todo dia na minha ocasião especial. E ficava arrasada também quando ela escovava e ficavam mais evidentes as marcas de que aquele cabelo não era "cuidado", com pontas duplas, raiz alta, frizz e tudo o mais.
No fim da oitava série, com 13 anos anos, decidi parar de prender o cabelo. Se minha coleguinha loira podia acordar e vir pra aula sem ter que ficar procurando xuxinha, eu queria poder fazer isso também. Então usava o cabelo solto, mesmo sem o corte ou a hidratação perfeita. Fiquei com medo de sofrer bullying (de novo) na escola, mas ninguém falou nada. Pelo menos não na minha frente
Quando entrei no ensino médio, comecei a pintar de vermelho, mas, com a preguiça de sempre (hmmm, fazer uma hidratação ou dormir? tirar as pontas ou ler um livro?), eu nunca fiz a tal da manutenção recomendada. Escovava o cabelo com mais frequência, e com o passar dos anos relaxando, a raiz dele foi crescendo com uma textura diferente, e a escova da minha mãe melhorou, enfim: eu gostava dele liso, escovado.
Quando eu entrei na UnB, veio a indiferença capilar completa: naquela terra estilisticamente de ninguém, tanto fazia como era meu cabelo. Ele estava bem cacheadinho na época, com a raiz frisada dos relaxamentos, e eu quase nunca o escovava. Mas quando escovava, sempre vinha um reforço positivo das coleguinhas: "nossa, como você tá linda! que cabelo lindo! ficou ótimo!" - um jeito gentil de tentar dar aquele toque "amiga, usa sempre assim, que daquele outro jeito não tá legal!".
Todo mundo sabe que reforço estético positivo é muito eficaz, por ser sutil e vir na forma elegante de um elogio. Mas aí eu já estava me politizando e enegrecendo cada vez mais (era a UnB!), e na semana seguinte, lá estava eu com o cabelo enrolado de novo.
Quando eu comecei a trabalhar no meu primeiro emprego, num órgão público, quis causar uma "boa impressão", e não chocar a sociedade com meu cabelo crespo. Eu comecei como secretária, tinha que passar uma "boa imagem", dizia uma das minhas chefes. Ia com o cabelo sempre escovado. Nos dias em que aparecia com ele natural, ouvia um "Poxa, não deu tempo de arrumar o cabelo hoje?" ou "Ah, hoje você tomou banho?" (por causa dos cabelos molhados.). Tudo em tom de brincadeira, claro.
Depois de uns seis meses resolvi fazer um tratamento de choque, não no cabelo, mas nos coleguinhas de trabalho e na tal chefe: cabelo natural e solto, de segunda a sexta, fizesse chuva ou sol, com hidratação e corte ou não.
Os comentários acabaram.
No meio do ano passado, fiz meu último relaxamento de raiz, antes de fazer meu mochilão de um mês. Meu cabelo estava enorme, e totalmente liso, não cacheava mais. Quando voltei, decidi não alisar mais e me preparar pra assumir o cabelo totalmente crespo. Fiz isso quando achei que não sairia de uma prisão pra outra: da de ter que ter o cabelo liso, pra de ter que ter o cabelo crespo. Já tinha esclarecido pra mim mesma que escovar o cabelo de vez em quando não era "trair o movimento", e que no dia que eu não pudesse ir com o cabelo liso pra um evento importante, eu não me sentiria arrasada.
A transição capilar pode ser radical ou moderada: pode-se cortar o cabelo bem curtinho de uma vez, tirando-se toda a química, ou fazer-se cortes graduais, deixando a raiz crescer. Nenhuma das duas é fácil. Eu não quis cortar o cabelo todo de uma vez porque não me sentia corajosa o suficiente pra assumir um black curtinho. Também porque esse tal afro curtinho, ou penteado black, muitas vezes só é socialmente aceito quando repete os vícios de vaidade de quem tem cabelo liso: o cabelo crespo e curto é "compensado" por acessórios e lenços, o tempo e o dinheiro gastos com eles são os mesmos, só mudam os rótulos dos produtos.
E é aí que entra o que eu disse no comecinho desse texto, lá em cima: eu não sou vaidosa. Fim. "Cuidar" do cabelo não é uma das minhas prioridades de gasto de tempo, energia e dinheiro, nunca foi, talvez nunca seja. Ah, então eu vou ter o cabelo "feio" pra sempre? Talvez. Mas a verdade é: os cabelos naturais sempre ficarão mais facilmente saudáveis e, consequentemente, bonitos, do que os cabelos danificados quimicamente. Então a grande diferença que ter o cabelo natural fará na minha vida é essa: melhores resultados com o mesmo esforço que eu tenho pra cuidar dele hoje: lavar, passar um creme pra pentear e sair de casa.
Então, optei por fazer a transição de acordo com meus níveis de segurança e independência capilar, ou seja, a raiz do cabelo crescia à medida que diminuía minha necessidade de aceitação ou meu medo de reprovação, e à medida em que os reforços externos negativos ou positivos me afetavam menos.
E a transição mesmo fez isso: o cabelo grande, metade liso, metade crespo fica horroroso. Tô eu lá com minha moita bifásica em trocentas fotos do facebook, entre o fim do ano passado e o começo desse ano. Cabelo tosco, festas sensacionais. Em março fiz o primeiro grande corte: cabelo liso por cima e crespo por baixo. Em abril repiquei, e ele ficou com um caimento melhor, e com três texturas: crespo na raiz, liso no meio e cacheado nas pontas.
Hoje fiz meu BC. Queria que meu cabelo acompanhasse todas as transformações pelas quais estou passando. Chorei. Lembrei do tanto que essa relação com o cabelo já me fez sofrer, até o dia em que eu deixei meu cabelo pra lá, não sem ressentimento e não sem sufocar um pedaço da minha autoestima. Hoje fizemos as pazes, minhas raízes e eu. Vi no espelho uma mulher diferente. Ela parece adulta, corajosa, independente e segura. Ela me assustou. Me assustou porque ela era eu.
Essa não era uma questão de vaidade ou de estética, nunca foi. É uma questão de raiz, de identidade, de transparência.
Meus cabelos naturais mostrarão que, quando eu estiver mais atarefada com outras prioridades, não vai me sobrar tempo pra escolher um lenço perfeito ou fazer aquela hidratação caprichada. Mostrarão que, quando eu for me encontrar com alguém especial, prepararei o arranjo de flores mais bonito pra enfeitar meus cachos.
E mostraram hoje, pra mim principalmente, que eu finalmente topei o desafio de assumir essa mulher adulta, corajosa, independente e segura na qual a garotinha que procurava frustrada xuxinhas pela casa se transformou.
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