Sobre Portugal e xenofobia

>> sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Depois de ter recebido o mesmo link de vários amigos, resolvi dar aqui minha opinião (como brasileira, negra, estudante em portugal) sobre a campanha contra a xenofobia que tá rolando na Universidade de Coimbra. 

Estudo na Universidade do Minho e só posso falar, claro, sobre minha experiência pessoal. No âmbito acadêmico, desde o começo fui bem recebida por professores, colegas e funcionários - jamais ouvi qualquer comentário que procurasse me humilhar, ou seja, que viesse de alguém com alguma posição de poder em relação a mim, e que eu não pudesse responder na mesma medida. Nas discussões com amigos e conhecidos sobre Portugal, Brasil, a vida, o universo e tudo o mais, me esforço pra apresentar um retrato que dê conta da diversidade do meu país, tentando de algum modo dar a conhecer o discurso conservador de quem acha que o país vai de mal a pior e detesta morar lá (ao contrário do resto do mundo), e, por outro lado, o de quem reconhece os grandes avanços na área social, e não só, que tivemos nos últimos anos (do qual tomo partido). Aponto ainda diversas possibilidades entre essas duas visões.

De modo geral, passo a impressão de que sei do que estou falando (e acho mesmo que sei), então nunca me acusaram de ignorante. Na minha área específica, há dados que não sustentam um eventual olhar de desconfiança do português, como o fato de a língua portuguesa só ser considerada uma língua internacionalmente importante por causa do peso econômico do Brasil e seus 200 milhões de falantes, o fato de nós não precisarmos ler os textos acadêmicos/literários nas suas línguas originais não porque somos capazes de aprender línguas estrangeiras, mas porque não precisamos, já que temos excelentes tradutores e um mercado editorial que só faz crescer ( o que faz de nós também uma potência linguística), o fato de termos pesquisadores que se destacam internacionalmente em diversas áreas, o fato de estarmos aumentando o número de bolsas concedidas pra pesquisa e ensino dentro e fora do país, enquanto aqui houve o menor número de projetos aceites em mais de dez anos.

Além de tudo isso, aqui estou eu, mulher e negra, representando ao mesmo tempo elite e periferia, fazendo doutorado aos vinte e três anos sem que pra isso tivesse que estudar de noite à luz de uma vela de sebo depois de cortar cana sob um sol escaldante - isso quer dizer alguma coisa sobre o sucesso das políticas de transferência de renda no nosso país!

Ainda assim, reforço todos os estereótipos que o próprio Brasil vende em novelas e anúncios de turismo: bunda, samba e futebol, sorrio sempre, falo alto e "pegando", gesticulo muito, como sempre fiz - e por que teria que ser diferente? Nada disso me impede de ser uma das melhores alunas do doutorado, de ser respeitada como pesquisadora ou faz com que tenha minhas capacidades intelectuais colocadas em dúvida.

E isso é porque eu sou excepcional? Não, claro que não. A verdade é que, mesmo que ainda existam pessoas agressivas ou preconceituosas contra brasileiras, o que transforma esse preconceito em violência é o domínio do poder, poder que nos nossos tempos é validado pelo dinheiro.
E isso, nesses dias de austeridade e troika, os portugueses não têm - não mais que nós, pelo menos.
É claro que alguns deles ainda não se acostumaram com essa novidade de ter que tratar ex-colono como gente, e temem (coitados!) serem colonizados às avessas - temem serem "aculturados" por uma invasão cultural feita por novelas, músicas, com o acordo ortográfico.
Mas o mais importante é que esse preconceito não se reproduz nas instituições, como discurso oficial ou levado a sério.

Eu passei por um processo de obtenção de visto, a instituição "governo" me aceitou aqui, tenho direitos. Se eu for agredida verbal ou fisicamente, tenho quem me defenda, tenho o direito a denunciar, prestar queixa, ser ouvida - minha reclamação não vai ser colocada numa gaveta com um carimbo "deve ter dado motivo". E, caso isso aconteça - aí, sim, todas as formas de denúncia e publicidade pra que o crime de xenofobia/racismo/violência seja punido serão válidas.

O que evidencia isso - essa conquista oficial de respeito - é a repercussão da notícia em mídias mais conservadoras. Reparem que a notícia não é "casos de xenofobia em Coimbra", ou "Universidade omite casos de xenofobia", mas "campanha contra xenofobia" - que é quase a mesma coisa que promover uma passeata contra a corrupção. A minha opinião sincera sobre este caso específico é: uma chapa que quer se eleger ao "DCE" deles pegou nessa pauta fácil (quem é que vai assumir que é xenófobo? não é mais aceito socialmente, lamento), nada específica e boa-mocista pra se promover. Poderia ter tocado em questões mais espinhudas, como a da praxe acadêmica, "tradição" que recentemente pode ter sido responsável pela morte de seis universitários aqui em Portugal.

Que muita gente é racista e preconceituosa, e teme uma colonização às avessas tupiniquim eu não duvido. Mas institucional e economicamente, hoje, pelo o que pude conhecer de Portugal, elas não têm poder. Que chorem, que esperneiem, que comentem nas notícias dos grandes portais, que espumem de raiva e ódio - o mundo é uma arena ideológica e estamos aqui pra lutar. Se uma ofensa ou agressão concreta eventualmente acontecer, tenho a opção de ignorar, rebater, argumentar, não me relacionar com tal pessoa, ou, num caso mais grave, denunciar formalmente a ignorância que se traduzir em ato de violência: tenho respaldo legal e social pra isso.

Sem medo de estar minimizando este problema, acredito que Portugal tem outros maiores pra resolver. Este país e este continente não sabem pra onde querem e podem ir, não sabem como será e temem o mundo cada vez mais próximo em que não terão papel de protagonistas, a proclamada "amizade" da "união" europeia está se desmoronando diante das imigrações internas - e a xenofobia crescente e, nesse caso, concretamente violenta, contra os imigrantes do leste (búlgaros, romenos, ucranianos) é uma questão mais urgente que nem começou a ser debatida às claras.

Quanto a nós, jovens brasileiros que vêm pra cá gerar renda, movimentar o mercado interno e desenvolver pesquisa, somos o menor dos problemas e até alguma parte da solução, porque trazemos dinheiro, não estamos pedindo nada. Aos portugueses que ainda não se "aperceberam" disso, desejo vida longa, pra que eles vejam a cada dia mais nossa vitória.

3 comentários:

Clara 31 de janeiro de 2014 às 19:27  

Bom, que bom! :)
adorei a conclusão hahahaha

Newton Neto 3 de fevereiro de 2014 às 16:04  
Este comentário foi removido pelo autor.
Newton Neto 3 de fevereiro de 2014 às 16:05  

Cê nos representa muito bem! Muito orgulho de quem você está se tornando. Aqui meus alunos sempre me perguntam coisas sobre Portugal e eu sempre tenho que ir pesquisar e aprender. O impacto atual de Portugal na vida brasileira parece ser o mesmo de uma visita de três dias de uma prima de terceiro grau ocupando nosso sofá. Não marca. Muitos do que conheço aqui, provenientes de ex-colônias agora independentes da França ou da Espanha, por exemplo, não conseguem conceber quão pouco eu sei sobre a vida atual do que fora um dia o colonizador. Parece que essa prima ainda sofre com o triunfo de um filho bastardo na família.

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