Todo mundo tem o direito de odiar o seu emprego

>> terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Nos encontramos na praça de alimentação do shopping, lotada naquela segunda-feira, ao meio dia. Não me lembro bem qual shopping era, mas não tem importância, todas as praças de alimentação de todos os shoppings centers do mundo todo são iguais, e encontram-se igualmente lotadas ao meio dia das segundas-feiras.

Olhamos com olhos ferozes para um casal que já acabou de comer, mas que se demora em carinhos numa das mesas. Finalmente o casal percebe a inconveniência desse momento de intimidade e libera a mesa pra gente.

Nos sentamos, e imediatamente ela começa a desfiar o rosário de reclamações que, na cabeça dela, faz com que sejamos pessoas mais íntimas - afinal, com pessoas que ela não conhece, ela mostra o melhor que pode oferecer, é sempre gentil, amável, simpática, feliz - mas comigo, que sou uma amiga íntima, ela não precisa se dar esse trabalho, e pode ser "ela mesma", ou seja, uma pessoa miserável e triste (não entendo bem essa lógica, já entendi, mas agora há algo nesse raciocínio que me escapa).

A principal reclamação de hoje é o trabalho dela. As colegas são horríveis, a chefe é horrível, as clientes - nessas nem se fala, sempre esperando ser servidas com um sorriso no rosto, como se ela fosse obrigada a estar feliz todos os dias - ainda mais naquele emprego de merda, que ela detestava, que a explorava, mas que ela tinha que aturar dia após dia, numa rotina torturante, porque afinal, as contas - e quantas contas! - não se pagam sozinhas.

O rosário é interrompido para que a gente afinal peça o que vamos comer. Eu me dirijo primeiro ao caixa do fast-food eleito, e ela fica, para impedir que a mesa seja usurpada por outro casal feliz - existem tantos desses caminhando livremente por aí hoje em dia! Em seguida é a minha vez de proteger a mesa de executivas apressadas - que viessem mais cedo, não sabem da lotação das praças às segundas? Daí a um momento que me pareceu muito longo, ela, a pessoa a quem chamo amiga, volta, estampando no rosto um profundo desprezo pela humanidade.

- Que atendente mais incompetente! E grossa! Como elas deixam essa gente burra trabalhar pra elas? Deviam ser mais seletivas com quem escolhem pra atender o público... 
- Talvez ela só esteja tendo um dia ruim...
- E a culpa é minha? O que que eu tenho a ver com isso? Se a pessoa escolhe trabalhar com atendimento, com comércio, o mínimo que ela tem que saber é tratar bem as clientes! E eu lá quero saber do dia dela? Pessoazinha mais estúpida...

Não dou ouvidos à reclamação, almoço calada, escuto pacientemente o quanto a vida dessa minha amiga lhe parece irremediavelmente infeliz.  Nos despedimos, agora a praça não está tão lotada, já está tarde. Meu caminho de volta é triste: não fui amiga o suficiente dessa pessoa que verdadeiramente amo. Não tive a honestidade de mandá-la calar a boca e dizer que ela é imensamente privilegiada, e que foi extremamente arrogante em relação à atendente, que por sua vez merecia de todo alguma empatia, já que elas têm em comum no mínimo isto: odeiam o seu trabalho. Sequer tive a coragem de fazê-la perceber que tudo o que ela dizia da atendente se aplicava a ela mesma, e que, em vez de hostilizar aquela pessoa, ela devia convidá-la pra almoçar - imagina, ela não deve ter horário de almoço, então pra jantar, ou pra tomar um chopp depois do expediente - pra que elas pudessem trocar experiências sobre o trabalho que odiavam, conversar sobre formas de trocar de emprego - quem sabe poderiam começar o próprio negócio juntas?


Desculpe, querida amiga, não fui honesta com você e deixei que você se tornasse um ser humano pior e mais egoísta na minha frente, só porque não tive a disposição necessária para te ajudar, pedindo gentilmente que você se calasse. Prometo que da próxima vez em que nos encontremos em uma praça lotada segunda, serei uma amiga melhor.




(esse e outros textos experimentam algumas sugestões deste manual)

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