Quem são essas vadias #3

>> quinta-feira, 13 de junho de 2013

Pelo terceiro ano consecutivo, a Marcha das Vadias é promovida em Brasília. E ela está cada vez maior, com cada vez mais visibilidade, cada vez mais organizada, com mais recursos, fazendo mais barulho. Clique para ler o texto de 2011 e o de 2012.

Escolhi escrever esse ano sobre a dificuldade - a verdadeira luta - que é não ser machista. Eu luto contra o meu machismo todos os dias. às vezes perco, às vezes ganho. Mas, principalmente, tento fazer com que ele não seja o responsável pela violência, física, verbal, simbólica, contra nenhuma mulher.

Sou machista porque o machismo foi uma das coisas que aprendi ainda criança. Com a minha mãe, primeiro, com a escola, os amigos da rua, a família de modo geral, depois. 

Agora, adulta, tentando delinear minhas próprias convicções, tenho muito trabalho pra praticar o não-machismo. Não precisa chamar de feminismo. Ser não-machista já é muito difícil. Defender as mulheres e não agredi-las são coisas distintas, mas igualmente difíceis e igualmente necessárias.

Ser não-machista é não fazer quase tudo o que consideramos como normal, padrão, senso comum. É não fazer coisas que pessoas que eu amo, como a minha mãe e meus melhores amigos, pensam que é o "absolutamente certo".

Ser não-machista é não pensar que

A opinião de uma mulher sozinha não vale nada
Mulher de verdade tem que ser vaidosa (a vaidade é inerente à mulher!)
Quem fala com garçom/gerente/taxista é homem
Mulher de roupa curta/sem roupa quer/merece ser estuprada ou sexualmente assediada
Mulher não pode viajar sozinha, ou andar sozinha à noite
Depilação é questão de higiene
Toda mulher é consumista e superficial
Os adjetivos "leve", "suave", "frágil", "delicado", "fraco", "fresco" estão intimamente ligados ao "ser mulher"
A meta da vida da mulher é arranjar um marido - fiel e rico, e que ela vai fazer de tudo - TUDO - pra conseguir isso
Mulher deve ser dama na sociedade e puta na cama
Mulher não tem direito de vender seu corpo - por dinheiro, por status, por um apartamento, pelo que ela bem entender
Mulher que tem vários parceiros sexuais é piranha/vaca/cachorra - insira o animal que preferir
Mulher tem que ser mãe pra ser "completa"
Mulher não fala palavrão, não arrota, não peida, não fica bêbada e vomita
Mulher feia tem que ser simpática e fácil 
Há mulheres para se divertir e mulheres para se casar, e é fácil identificar cada uma delas
A mulher precisa achar um jeito de ser forte e independente "sem deixar de ser mulher"
Mulher não toma iniciativa no flerte
Mulher tem que se valorizar - como mercadoria que é!
Mulher tem que ser prendada - saber lavar, passar, costurar, cozinhar
A responsabilidade de cuidar da casa é da mulher - se ela quiser trabalhar fora, tem que antes garantir que a sua "primeira obrigação" (a casa e os filhos) estejam bem cuidados.

Ser não-machista é não concordar com nenhum, NENHUM dos itens anteriores. E muitos outros. É não separar seu julgamento moral (que você tem todo o direito de ter, claro) por gênero. Se você é contra, digamos, a "promiscuidade sexual", faça-me o favor de estar, digamos, em desacordo com a conduta de pessoas promíscuas. Se você acha que a vaidade estética é uma qualidade importante, faça-me o favor de estar em desacordo com a conduta de pessoas desleixadas.

Sonho com um mundo em que eu não tenha mais que ouvir coisas como "ser preguiçoso é ruim, mas é pior, porque fulana é mulher", "não ter dinheiro é ruim, mas é pior, porque fulano é homem", "todo mundo precisa ter tal coisa, ainda mais você, que é mulher", "é muito feio fazer tal coisa, principalmente você, que é homem", "não, mas pra você tudo bem fazer isso, porque você é mulher... mas pra ele, que é homem, pega mal..."

Esse é, com certeza, o tipo de comentário machista - sim, MACHISTA, que eu mais ouço. Todos os dias sou bombardeada por coisas que mulheres podem fazer e serem socialmente aceitas, mas homens não. E vice-versa. Escuto esse tipo de comentário dentro de casa, no trabalho, entre os amigos, na televisão - e eles me ferem profundamente, porque vêm de pessoas que eu amo e admiro, e que são machistas, em grau maior ou menor. Eu não peço a essas pessoas que sejam feministas. O feminismo é uma atividade política que exige, entre outras coisas, paixão, como qualquer atividade política. O que eu peço - e o que eu espero que algum dia a lei exija delas - é que elas sejam não-machistas. Que construamos uma sociedade que enxergue pessoas além de seus gêneros, socialmente construídos ou impostos, artificiais.

E esse pedido não é anacrônico - não acuso o homem das cavernas de garantir a procriação da sua espécie escolhendo mulheres de quadris largos, ou elegendo os membros mais fortes de cada comunidade - homens - como caçadores, de serem  machistas trogloditas.

Mas estamos em 2013, séc. XXI. 7 bilhões de pessoas no planeta. Tecnologia, educação, saúde. urbanização.

Por que mulher ainda é sinônimo de fraqueza, instabilidade, vaidade, sensualidade?
Por que homem ainda é sinônimo de força, coragem, brutalidade, aspereza?

Até quando ficaremos brincando com esses papéis sociais obsoletos e que matam - matam! - homens e mulheres pelo mundo todo, ignorando que deveríamos ser - como lutamos pra ser! como os que vieram antes nós lutaram pra ser! - pessoas livres para escolher e construir sua própria atuação social?

Eu quero ser uma pessoa não-machista. Quero olhar pra uma mulher na rua e reparar na cor da roupa - amarelo -, que eu, pessoalmente, não gosto - e não no tamanho da saia dela. Quero ouvir uma criança, um menino, dizer que quer um tênis rosa e não pensar "hmmm, esse aí vai ser viado". Quero ouvir um amigo chorar e não dizer "deixa de ser mulherzinha!". Quero ver uma amiga tomando a inciativa num flerte e não bater nas costas dela dizendo "você foi muito macho!"

E isso é muito difícil, isso é ir contra tudo o que eu internalizei em sociedade. Mas é isso que vai fazer com que mulheres parem de morrer ou de sofrer qualquer tipo de violência por que são mulheres.

Homem e mulher são designação de gênero da espécie humana. Não são adjetivos. Não são rígidos papéis sociais - não deveriam mais ser na nossa sociedade. 

Dizer que sou mulher, a priori, não diz nada sobre mim, nada, a não ser que tenho um ciclo menstrual e que posso vir a gerar um filho em meu útero. Diz também, socialmente, que sofro uma série de restrições, cobranças e violências, que outros indivíduos, homens, não sofrem, ou sofrem de maneira diferente.
Não diz nada sobre mim, meu caráter ou minhas preferências, não diz se prefiro rosa ou azul, não diz se sou sensível ou grossa, se gosto de poesia ou esportes. Não diz.

O que diz algo sobre mim é minha religião, meu partido político, o que eu quis estudar, minha atuação profissional - minhas escolhas.

É claro que eu sei - admiti no primeiro parágrafo desse texto - que "o mundo real" não é assim. Que o fato de nascer com uma vagina veio junto com um pacote de obrigações sociais e comportamentos pré-determinados que eu deveria ter. (que os digam os "isso é jeito de moça?" que eu ouvi da minha mãe!)

Mas eu luto todos os dias para não ser refém desse pacote. Para ser não-machista. Para me enxergar como pessoa. 

Contudo, eu sei que eu nasci num mundo e numa época que não me permite, mulher e negra, ser só "pessoa",  padrão, default, isenta, cuidando da minha própria vidinha e buscando egoisticamente minha felicidade. Isso é omissão, é covardia, é apatia

Então, se for pra eu adotar algum papel pré-moldado pra minha vida - um papel que eu escolhi - que seja o de mulher independente, forte, com voz, livre. Que seja o de vadia.

***

A Marcha das Vadias/DF de 2013 vai ser no dia 22 de junho.
Concentração às 14h em frente ao Conjunto Nacional!
Participe!



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