avulsas #1

>> segunda-feira, 26 de março de 2012

Trecho retirado do volume 2 de O retrato - segunda parte do romance O tempo e o vento, de Erico Verissimo, publicado em 1951. O diálogo se passa em 1910, 4 anos antes da primeira guerra mundial. (2005, p. 136)


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- Mas por que razão afirmas que a ditadura é a única forma de governar o Brasil? - perguntou Rodrigo.
- Porque este é um país de mestiços e analfabetos. Os eleitores em sua maioria mal sabem desenhar o nome e não têm idoneidade intelectual para escolher seus administradores e legisladores. Cabe, portanto, às elites cultas dirigir o povo e organizar os governos.
Chiru saltou de seu canto.
- E onde fica a democracia? - gritou.
- A democracia - replicou o tenente de artilharia - é uma ficção baseada na romântica ilusão de que o homem é essencialmente bom e que portanto a vontade da maioria será sempre uma expressão de verdade.
Jairo, muito vermelho, sacudia a cabeça, discordando, mas sem dizer o que pensava do assunto.
- E depois - prosseguiu Rubim -, se por um lado a democracia tem como objetivo o bem-estar do povo em geral, por outro a história tem provado sobejamente que essa felicidade só poderá ser atingida por meio dum governo aristocrático. Continuo a afirmar que não tem nenhum sentido lógico ou prático essa busca da felicidade geral. É uma absoluta perda de tempo que atrasa a produção de super-homens. Neste ponto Platão e Aristóteles estão de acordo com Nietzsche ou, melhor, Nietzsche está de acordo com esses dois filósofos clássicos.
Jairo continuava a menear a cabeça, o cenho franzido.
- Pois eu - declarou Rodrigo - sou liberal, isto -e, um partidário da tolerância religiosa, da livre-iniciativa, do livre-pensamento, do respeito ao indivíduo. Acho que todos os homens nasceram iguais e o que os torna desiguais são as circunstâncias e os meios em meio dos quais crescem.
Rubim soltou uma risada e a dentuça projetou-se para a frente, agressiva. Depois de tomar o último gole de vermute, replicou:
- O liberalismo, meu caro Rodrigo, não passa dum disfarce muito transparente do medo. O liberal é um cidadão que se recusa a admitir em voz alta que o homem é um animal de rapina e que o verdadeiro, o único direito que existe na natureza é o direito da força. Por ser liberal ele se considera muito nobre, uma espécie de farol a iluminar o mundo. No entanto, o liberalismo, como o decantado amor cristão, tem origem apenas num sentimento inferior: o medo de que o próximo nos possa fazer mal. Isso nos leva a "amá-lo" (como se tal coisa fosse possível!) a fim de que ele também nos ame ou, pelo menos, não nos queira muito mal nem nos agrida. No entanto, se o liberal se sentisse invulnerável na sua torre de marfim, o que ele faria era seguir a sua tendência natural, ficar indiferente ao próximo ou transformá-lo em seu escravo.
- Absurdo! - aparteou Jairo. - Sem a menor base científica!
Rodrigo aproximou-se do tenente de artilharia e fez-lhe uma pergunta incisiva, marcando bem as sílabas:
- E esse desejo de força, essa necessidade de afirmação que vocês os nietzschianos sentem, não será também um produto do medo?
- Não. É antes um desafio aos deuses!
Ao pronunciar estas palavras Rubim soltou com elas sua gargalhada convulsiva. Rodrigo teve a impressão que estava na frente dum grande boneco mecânico a quem tivessem dado toda a corda para que ele se pusesse a imitar uma dança de são Vito.
- Mas que mérito podemos ter, tenente, nesse desafio a entidades em cuja existência não acreditamos?

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