avulsas #4

>> segunda-feira, 4 de junho de 2012

De Erico Verissimo: O tempo e o vento, Parte 3, Vol. 1 - O arquipélago, 2005, p.246

Qualquer dia por vingança o velho sino da Matriz estará dobrando para anunciar a Santa Fé a morte do Dr. Rodrigo Terra Cambará.

Num misto de auto-sarcasmo e autopiedade imagina o próprio funeral. Luto no Sobrado. A rua apinhada de gente. Decidem levar o caixão a pulso, até a metade do caminho.Depois metem-no naquele repulsivo carro fúnebre do Pitombo, com figuras douradas em relevo nos quatro ângulos (uns anjos com cara de tarados sexuais) e aqueles matungos com plumas pretas nas cabeças. Tráfego interrompido nas ruas por onde passa o cortejo. Uma fileira interminável de automóveis... Santa Fé em peso no enterro. O comandante da Guarnição Federal. O Prefeito. O Juiz de Direito, enfim, todas essas personalidades que A Voz da Serra classifica como "pessoas gradas". O cafajeste do Amintas também lá está, com uma fingida tristeza no rosto escrofuloso. Mas quem é a moça que vai sozinha ali naquele auto, com cara de forasteira, toda vestida de preto e com óculos escuros? Então não sabem? É a amante do Dr. Rodrigo. Verdade? Mas que jovem! Pois é, podia ser filha dele. O patife tinha bem-gosto.

Agora o cortejo está no cemitério à frente do mausoléu dos Cambarás. (Rodrigo remexe distraído a canja, com a colher.) O falecido pediu antes de morrer que não deixassem sua cara exposta à curiosidade pública. É por isso que não abrem o caixão. Fala o primeiro orador. Quem é? Pouco importa: Mas como diz besteiras! Fala o segundo: vomita também um amontoado de lugares-comuns. Nunca, ninguém, nem os filhos do morto, nem sua mulher, nem seus melhores amigos poderão fazer-lhe justiça. Porque ninguém na verdade o conhece. Viram dele apenas uma superfície, um verniz externo. Ninguém chegou a compreendê-lo na sua inteireza, na sua profundeza. E depois que o deixarem entaipado no cemitério, a cidade continuará os seus mexericos, as suas maledicências, lembrando-se apenas daquilo que se convencionou chamar de de defeitos do dr. Rodrigo Cambará. E ele morrerá desconhecido como viveu. Desconhecido e caluniado, o que é pior. Mesmo os elogios dos oradores serão insultos. Ah! como gostaria de fazer um discurso ao pé do próprio cadáver! Não seria uma oração de provocar lágrimas, não. Ia contar verdades, lançá-las como pedradas na cara de todos aqueles hipócritas.Porque, com a exceção dos que realmente o amavam - alguns parentes, poucos amigos -, os outros lá estavam por obrigação social ou por puro prazer sádico. Eram uns invejosos, uns despeitados. uns covardes, uns impotentes! Não podiam encontrar um homem autêntico que não sentissem logo desejo de vê-lo destruído e humilhado. Era-lhes insuportável o espetáculo dum macho que tem a coragem de agarrar a vida nos braços, ser o que é, dizer o que pensa, fazer o que deseja, comer o que lhe apetece. Foram quase todos ao enterro para assistirem ao fim daquele monstro, para terem a certeza de que ele ia ficar para sempre encerrado no jazigo, a apodrecer... Tiveste a coragem de viver? Agora paga! E todos aqueles necrófilos, todos aqueles moluscos podiam voltar tranquilos para suas casas, para suas vidinhas apagadas, para as esposas que detestavam mas com as quais eram obrigados a viver e a dormir, para seus probleminhas sem beleza, para as dificuldades financeiras do fim do mês, para a azeda rotina cotidiana, para seus odiozinhos, suas birrinhas, suas mesquinhas invejas, para seus achaques - em suma - para todas aquelas coisas pequenas e melancólicas de seu mundinho de castrados!

Canalha! Só de pensar nestas coisas Rodrigo sente que tem a obrigação de não morrer.

0 comentários:

Postar um comentário

  © Blogger template Simple n' Sweet by Ourblogtemplates.com 2009

Back to TOP