Carta Ultramarina

>> segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Eis que vos escrevo da ex-Metrópole, da antiga sede do Império Colonial de Portugal, tudo aquilo que a gente aprende (ou não) nas nossas aulas de História. Uau!

É difícil começar essa primeira carta do lado de cá do oceano, porque tudo parece lugar-comum - as palavras já foram bem gastas por pessoas que realizaram seus sonhos. Por mais gastas que estejam, precisar exatamente o que é viver o seu sonho é inalcançável. Pois bem, estou vivendo o meu: estudar o que eu mais amo no mundo - justamente a arte de renovar palavras já tão usadas - num lugar que as tem usado há mais de dois mil anos, onde nasceu a língua por meio da qual eu me fiz gente.

Lugar-comum que seja, viver o sonho é mesmo isso: não saber bem a fronteira entre o vivido e o tantas vezes imaginado. Toda vez que eu passo numa rua "florbela espanca", que faz esquina com a "camões", a duas quadras da praça "almeida garret" que fica bem pertinho da "antero de quental", eu paro e penso, como o pequeno David, "is this real life?"

Nos primeiros dias, me dei o direito de ficar deslumbrada. (sim, porque todas as questões político-étnico-sociais-etc pipocam aqui o tempo todo, afinal, eu vim pra cá estudar literatura e cultura, e, sim, continuo a ser a mesma pessoa que escreveu os outros textos inflamados e apaixonados e revoltados desse blog. então sim, eu cobro a coerência da pessoa que tava gritando por vinte centavos de real há três meses e agora paga 1.500 euros numa passagem de avião intercontinental.)

Mas eu abafei todas essas vozes "istas", e me permiti estar completamente deslumbrada, como se deve ficar quando se vive seu sonho. E não foi difícil: o norte de Portugal é lindo! A minha nova Universidade é maravilhosa. O curso é excepcional. Fiquei deslumbrada, e muito. E o me sentir deslumbrada teve um poder anestesiante no impacto que é se ver de repente tão longe de vinte e três anos de memória e afeto.

Mas, apesar das luzes e dos ruídos, das ruínas e dos falares, aquela pergunta tem muita força: what is next? e agora, José?

O que se faz depois daquele momento fugaz, brilhante e "warm" que a gente chama de felicidade?

Depois é encarar o quarto vazio, os pais a 7 mil km de distância, a grana curta, o começar do zero numa universidade nova, numa casa nova, que é sua sem o ser, o "a vida de todo mundo que eu amo vai continuar sem mim", o "essa louça não vai se lavar sozinha", o "preciso comprar um edredon. e um ralador. e uma saboneteira. ah, minha primeira panela é linda!". Depois é lembrar que estou estudando cultura e identidade, e que isso é questionar o tempo todo o que é ser imigrante, de ex-colônia, da periferia de brasília, no brasil, que é periferia de portugal, que é periferia da europa - o que é ser eu, o que eu represento - quem eu represento. Depois é descobrir o quanto eu preciso de novos amigos e amores - e que tipos de amizades e amores serão esses novos, se serão amizades e amores mesmo, ou só ruído, ruído pra quem não consegue suportar o silêncio, silêncio que é solidão, solidão que é saudade, esse sentimento que me esfria de dentro pra fora, que vai ao encontro do frio que cada vez aumenta mais do lado de fora no outono do hemisfério norte.

Depois é saber que o depois é agora. E ele me exige resposta, posicionamento, trabalho. Acabaram-se as desculpas - acabou-se o trabalho burocrático e chato, mas que me servia de muleta pra não encarar que eu preciso decidir, afinal, se esse negócio de ser escritora é sério, e se for, que escrita é essa, que escritora é essa, que estilo é esse, que voz - qual é a minha voz? e depois ver que a primeira voz não presta, que ela tem verniz, hipocrisia, medo, moral e bons costumes. e me frustrar com isso, e desistir, até não poder mais e tentar a segunda vez, que também não vai prestar. e de novo, e de novo, e talvez nunca preste, que vai ver minha vocação na verdade era ser médica veterinária e eu nunca soube.


Então, amigos, como bem se vê, nós, das humanidades, nunca estamos satisfeitos. é um pensar-se sem fim, é trabalho que não chega pra uma vida. esta primeira carta ultramarina é fruto da decisão de que o blog continua, como laboratório-meio e como fim também, já que ele tem uma certa audiência e as palavras e as ideias, ainda que gastas, têm em si essa coisa fantástica que é não conhecer ou respeitar fronteiras geográficas (e foi isso, afinal, o que me trouxe tão longe!).

Com meu novo autor (Saramago) e com meu antigo autor (Verissimo), tenho visto que a vida é isso: não há genialidade que prescinda de trabalho. Ora et labora, aconselhou são bento, e como o trabalho dos escritores não está nada longe do monástico, termino assim essa primeira carta ultramarina, com saudade, e com a promessa de que a primeira não será a única.

1 comentários:

Vampira Pandini 21 de outubro de 2013 às 17:17  

Só você pra conseguir descrever a beleza de se encantar com o novo, sem abandonar a preocupação do agora <3

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