Mais Médicos, Menos Corporativismo

>> segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Hoje começa o período de três semanas de acolhimento da primeira leva de médicos estrangeiros que vieram para o Brasil participar do programa Mais Médicos, do Governo Federal, que envolve diretamente os Ministérios da Saúde e da Educação. 

Trabalho na Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde,  responsável pelo programa no MS, e tenho acompanhado de perto, tanto pelos bastidores, quanto pelo que sai na mídia, o seu processo de consolidação. Aqui vai minha opinião, algumas informações importantes, e questionamentos para o futuro. Todos os dados aqui são públicos, ao alcance de uma "googlada", logo, não estou usando meu cargo para divulgar nenhum tipo de informação privilegiada.



Mais Médicos

O provimento e a fixação de profissionais de saúde, especialmente de médicos, em áreas remotas, de difícil acesso e de maior vulnerabilidade é tema de debate institucional há muito tempo - foi um dos debates que motivou a criação da Secretaria em que eu trabalho, que existe desde 2003.
Esses municípios são áreas censitárias 4 e 5, de acordo com a classificação do IBGE, e se concentram no interior, nas fronteiras, nos distritos sanitários indígenas e nas periferias das grandes cidades.

Antes do "Mais Médicos", uma das estratégias do Ministério da Saúde para minimizar esse problema foi a criação do Programa de Valorização do Profissional da Atenção Básica - PROVAB, que existe desde o ano passado e serviu de modelo para a operacionalização do Mais Médicos. O Governo Federal tentava atender, assim, a demanda dos gestores municipais de saúde que diziam não conseguir atrair ou fixar profissionais de saúde, mesmo oferecendo altos salários.

As manifestações de julho aceleraram o lançamento do Mais Médicos, que, além de pensar no provimento dos profissionais (bolsa federal para o profissional, subsídio para o município, contratação de médicos estrangeiros, acordos bilaterais com outros países), pensou também na formação desses profissionais no Brasil (e é aí que entra o MEC), e, de uma vez só, mexeu com estrutura da formação e do exercício profissional de um dos maiores lobbys corporativistas do país.

Menos Corporativismo

Pra falar de lobby corporativista, vou comparar a classe médica com a classe dos professores (da qual eu faço parte por formação, e isso já diz muita coisa). As duas são fundamentais para bons IDH's, para o desenvolvimento do país, são o mote das prioridades de toda campanha política: saúde e educação, são tão antigas quanto a organização humana em sociedade. Portanto, gozam do mesmo prestígio social e economicamente, certo? Claro que não.

Medicina, diferentemente da maioria das licenciaturas, é um curso caro. É um curso que requer laboratório, equipamento, que não dá pra se virar - ou pelo menos, em que ninguém "aceita" se virar - com um punhado de livros, giz e saliva. Quem faz medicina no Brasil? A criança que desde pequena sente vocação pra ajudar todo mundo que vê sentindo dor? A criança que cresce desejando fazer desse mundo um lugar melhor e com menos sofrimento? Claro. Desde que os pais dela possam pagar. Pagar uma faculdade que custa de 2 a 7 mil reais por mês, durante cinco anos. Ou pagar no mínimo três anos de educação continuada pra que ela possa entrar no vestibular do curso mais concorrido das Universidades Federais.

Filha de pobre, via de regra, não faz medicina . Faz licenciatura. (E quem está mudando isso, aos poucos, é outro programa desse governo: o ENEM).

O estudante de medicina se dedica exclusivamente (não trabalha pra se sustentar), é branco, jovem, cheio de sonhos e planos pela frente. No mínimo, ele espera ter, com sua profissão que deu tanto trabalho pra conquistar (não estou dizendo que não), um padrão de qualidadede vida tão ou mais confortável do que o que teve enquanto dependia de seus pais. Ir trabalhar no interior, numa periferia ou numa área indígena não se encaixa nesse padrão de vida, é claro.

Ok, doutor, o Governo não pode te obrigar a deixar o conforto do seu bairro nobre na grande cidade pra morar numa casa simples no interior, diagnosticando virose, verminose, dengue, enfim, ter aquela vida besta numa cidadezinha qualquer, longe do conforto, do prestígio e de tudo que papai e mamãe te ensinaram a valorizar tanto na metrópole.

Nem o governo pode te obrigar a isso, nem a sociedade pode te condenar por não querer isso pra sua vida. 

Infelizmente, nem toda profissão pode escolher isso. Um professor em começo de carreira - que também fez seu curso com dedicação, que também se esforçou pelo seu diploma, que também é essencial para a qualidade de vida da população - não gostaria de trabalhar ganhando R$8 por hora/aula, ou numa escola de zinco, ou ensinando alunos em risco social. Mas os municípios do interior não andam por aí oferendo 35 mil reais por um professor de português, e há que se colocar comida dentro de casa, não é mesmo? 

Mas o médico tem bala na agulha pra fazer lobby. Médico tem contato na imprensa, no governo, entre os empresários, na indústria farmacêutica. Médico faz parte do grupo formador de opinião, da elite culta, tem acesso a todos os meios de comunicação. Médico não se sujeita porque não precisa se sujeitar. E está certo em não se sujeitar. 

Mais alternativas

Então, o que fazer? A culpa é do município? A culpa é do município por ser longe de tudo (quem mandou ter uma cidade ali no meio do nada?) A culpa é do município que não atraiu indústria, desenvolvimento, o progresso brilhante em vermelho e amarelo num letreiro do Mc Donalds? O governo vai falar o que praquele município? "Olha, sinto muito, mas a sua população vai morrer de disenteria, de leishmaniose, de anemia provocada por solitária, de pneumonia, se continuar aqui. Eu sugiro que vocês saiam daqui a vão engrossar as filas dos hospitais das periferias urban... oh, wait, lá também os médicos não vão porque têm medo de serem assaltados. É, sinto muito, o problema é de vocês".

Não, né. Porque há alternativas no mundo que podem ser testadas aqui. Uma delas é a contratação de médicos estrangeiros. O governo a fez por dois modos: O primeiro, foi a adesão ao edital. Os critérios pra que médicos estrangeiros viessem foram três: 1) Exercer a medicina legalmente no seu país 2) Ser proveniente de um país com mais mil médicos por habitante que o Brasil  3) Ter conhecimento de língua portuguesa.

A esses médicos que aderiram ao edital, foi apresentada a lista de municípios que solicitaram médicos, e eles puderam escolher até seis opções. A maioria deles escolheu cidades de periferia ou mais próximas dos grandes centros, assim como os brasileiros, o que resolvia grande parte do problema de provimento, mas deixava ainda uma lacuna: Os municípios com 0 médicos, mais pauleira, mais escondidos, mais difíceis de se chegar, continuaram não sendo escolhidos.

A forma encontrada para preencher essa lacuna foi o acordo bilateral de contratação de médico, a princípio, firmado com Cuba.


Menos medo cósmico de Cuba

Em Cuba, a lógica "só filho de rico faz Medicina" não existe. A ELAM é financiada pelo Governo cubano - a "ditadura comunista", segundo esse texto vazio e histérico de Reinaldo de Azevedo, e acolhe estudantes de toda a América que queiram fazer Medicina, quase sem custos. Mas, como nada é de graça nesse mundo, em vez de pagarem com a moeda capitalista, pagam com compromisso político. 

O aluno formado na ELAM aprende que vidas são mais importantes que cifras. E o dinheiro que ele não paga pra se formar, o governo, que banca tudo, recebe de volta quando ele for trabalhar no exterior. Pra manter o governo, a própria escola, e formar mais gente que, fora de Cuba, nunca realizaria o sonho de se formar em Medicina.

(Pelo o que pude entender, é mais ou menos um serviço civil obrigatório: o governo te oferece um serviço público de qualidade, a universidade, e em troca você dá algum tipo de compensação ao governo. Comparar isso com escravidão é, no mínimo, irresponsável, pra não dizer de um extremo mau-caratismo e oportunismo midiático.)

Então, o acordo entre países é diferente do acordo entre país e profissional por um motivo muito importante: os profissionais que vêm independentemente escolhem, na medida do possível, onde querem trabalhar. O acordo bilateral não prevê isso. O Brasil oferece o seguinte acordo na OPAS: "preciso de profissionais que vão para onde EU preciso. Em troca, repasso o dinheiro diretamente ao governo que me oferecer esses profissionais nessas condições"

O único país que pode fazer isso é Cuba, claro. Porque a admissão na sua Escola de Medicina tem esse requisito: que o aluno se forme para sair em missão, e que devolva, como parte do seu salário, o gigantesco investimento que o país fez em sua formação - que a esse mesmo aluno não seria possível em nenhum outro lugar do mundo.

Mais Humanização

A humanização do atendimento médico no Brasil anda a passos de formiga e sem vontade. O grande lobby da indústria farmacêutica, das faculdades de medicina e das grandes fabricantes de tecnologia médica não tem o menor interesse em uma medicina mais simples. O lema é progresso, avanço, e isso se conquista com mais tecnologia (mais custos) e menos conversa. A formação humanista da ELAM é diferente. Ela investe na relação médico-paciente, na promoção da saúde e no acompanhamento periódico da comunidade - são esses os princípios da medicina de família, ou da atenção básica, que é a área específica em que os médicos estrangeiros vão atuar. 

Isso preocupa uma classe médica que se forma totalmente dependente de exames sofisticados e aparelhos de precisão milimétrica. Não que eles não seja necessários, mas são, em muitos casos, dispensáveis. A medicina humanizada mostra aos barões do avanço que saúde pode custar bem menos dinheiro e um pouco mais de atenção da equipe médica. E que a tecnologia deve sim ser usada em casos graves, delicados, críticos, mas que, com promoção da saúde, que é muito mais barata, o número desses casos pode ser diminuído drasticamente.

Menos especulação

Muitos de nós que estamos neste debate não têm envolvimento direto no problema. Os lugares-comuns que eu ouço demonstram um total desconhecimento da realidade desses "rincões", desses "pobres", muito menos da situação dos supostos "escravos" que estão vindo de Cuba. (Só porque você não se imagina saindo do seu país pra trabalhar em missão humanitária, mesmo ganhando "pouco" - porque 25 a 40 % de 10 mil reais pra morar em cidades com custo de vida baixíssimo é miserável! - não quer dizer que quem faz isso está sendo forçado, né?). Muitos também ignoram que os municípios que receberão médicos provaram ao Ministério que têm condições de oferecer dignidade para o médico exercer sua profissão, ou seja: estrutura  e equipe.

Não quero dizer que não podemos dar nossa opinião sobre o assunto, mas, uma vez que não estamos diretamente envolvidos - esses médicos não vão nos atender, não temos ideia de como é viver em Cuba - nossa responsabilidade sobre o que dizemos sobre o assunto é ainda maior. Não é feio admitir que não tem opinião formada. No meio de uma discussão, é bem melhor falar um honesto "não sei", do que reforçar especulações maliciosamente originadas na mídia, nas redes sociais, na internet de modo geral. 
E, se quiser mesmo participar, se informe. 

A equação "mais médicos" é difícil de ser resolvida, não há solução mágica que agrade a todo mundo. 
Esse programa, acusado de ser eleitoreiro - mesmo  ele sendo de base, de diretriz, de fundação, mesmo prevendo resultados a médio e longo prazo, mesmo querendo passar de política de governo para política de Estado - é fruto de muita vontade política, de uma mobilização nacional  que quer dar uma resposta às ruas. E isso não pode ser ignorado. Os fatos que expus aqui, e algumas das minhas opiniões, são o mínimo para uma reflexão mais profunda, que estou disposta a tentar fazer com quem se interessar pelo assunto.

***

Todos nós, envolvidos diretamente na execução do programa, temos em mente isto: é um momento histórico, uma virada decisiva na história da saúde pública brasileira. Conseguimos entender um pouco melhor esse sentido de missão, de trabalhar por algo maior do que dinheiro e prestígio.
(imagina a crise no capitalismo se todo mundo começa a trabalhar por ideal e pára de alienar seu tempo num emprego qualquer?)

Acredito que em algum tempo será possível ter os dois. Trabalhar por ideal e receber um pagamento justo por isso. Mas pra isso, essa quebra no "curso natural" das coisas que esse programa está promovendo agora é indispensável. Acredito nesse programa, torço pra que ele dê certo, pra que seja imitado em outras profissões, pela democratização do acesso aos cursos de Medicina, e pra que, num futuro próximo, a brincadeira da criança que coloca sua roupinha branca e sai pela casa medindo temperatura dos pais e dando balinha de remédio pra todo mundo possa virar profissão, não importando se sua família é de empresários ou de camponeses.

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