O Halls superfaturado

>> terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Domingo à tarde. Dia de micarê na cidade. Muita expectativa, a galera pronta, abadá reformado, bermuda de marca, tênis NIKE. As vans levam os bandos até o local do show. No caminho, uma parada rápida pra abastecer: vinho, cerveja, vodka pra misturar com refri, sem falar no bom e velho suco gummi que a galera já traz de casa, cachaça, água, açúcar e QFresco pra dar a cor. Pronto, diversão garantida.
Começa o show. Não sobrou nada do que veio na van. A banda que tá tocando é um sucesso. Os fãs pulam, gritam, se emocionam com as músicas. E aproveitam também para beijar o maior número possível de bocas. Um objetivo que, para ser alcançado, requer experiência e preparo físico e psicológico: você olha no meio da multidão agitada. Escolhe aquele 'pegável' que tem a bermuda e o tênis mais caros. Aproxima-se sutilmente e se posiciona no campo de visão dele. Você ainda não bebeu o suficiente pra tomar iniciativa, então tenta chamar atenção. Balança os cabelos, faz gestos em câmera lenta e, de vez em quando, dá uma olhada discreta. Pronto, você fez sua parte, agora é com ele. Ele perceba a sua deixa e se aproxima. "oi", diz ele sorrindo pra você, mostrando o aparelho fixo, com borrachinha vermelha - sua cor favorita! Você também sorri, timidamente, e diz "oi". Daí surgem duas possibilidades:
a)Ele te agarra e te beija freneticamente, tentando apalpar tudo o que for possível, ou
b) Ele pergunta seu nome e, antes que você tenha tempo de responder, ele te agarra e te beija freneticamente, tentando apalpar o que for possível.
Agora, é só repetir a operação quantas vezes forem necessárias para que você bata o recorde da última micarê. Claro que nem sempre esse processo dá certo; às vezes, será preciso esbarrar ou pisar no pé do escolhido, acidentalmente, pra que ele te note. mas o resultado final será o mesmo: ele vai te agarrar e te beijar freneticamente, tentando apalpar tudo o que for possível.
Não é raro também que aconteça de você ter esquecido de comprar o velho companheiro Halls Preto quando a van parou para se abastecer. Agora, em pleno show, você olha pro lado e se depara com aquele moreno alto, bonito e sensual - se é amante profissional, não se sabe - e, quando pensa em se aproximar, lembra que não pode nem dizer um "oi" pra ele, estando com aquele hálito de vinho, cerveja e gummi. Por sorte sua, o Tio da Balinha está passando bem na hora, "Graças a Nossa Senhora dos Micareteiros", você pensa, aliviada. Chama o Tio e pergunta "Tio, quanto tá o Halls Preto?". O Tio da Balinha, que com certeza você já viu em outros carnavais, com aquela mesma havaiana remendada e a camisa do flamengo, olha pra você e diz "Tá de 3."
Você fica indignada, é claro, com certeza o mesmo Halls não passaria de um real no mercadinho ao lado da sua casa. "Tá muito caro, Tio!". Ele olha pra você. A expressão sofrida de quem está há mais de quatro horas andando entre os pulos da galera e sendo chamado de tio por gente que ele nunca vira, e que se fossem seus sobrinhos, com certeza não estariam ali. "Ahr", ele diz, provavelmente querendo dizer "Sinto muito, moça, é a lei da oferta e da procura. Depois, você ganha de mesada o que eu não ganho em 10 shows vendendo Halls de 3". E o finalmente diz: "Vai querer?" Aí, você pensa na desigualdade social do país. Nos pais de família que não ganham por mês o preço seu abadá. Você pensa nos soldados brasileiros no Haiti. Nos judeus e palestinos na Faixa de Gaza. E você toma uma decisão. Não vai mais comprar o Halls Preto e contribuir para que o Tio passe o resto da vida sendo chamado de tio por jovens bêbados. Nunca mais vai gastar dinheiro com micarê. Vai doar sua mesada pro Fome Zero. Vai virar "Amiga da escola" e ativista do GreenPeace. Você vai fazer um mundo melhor pro Tio poder comprar uma havaiana nova e nunca mais precisar superfaturar o Halls Preto. Você vai..."Vai querer?", ele pergunta, te despertando das suas reflexões. Você olha pro Tio. Olha pro Halls Preto. E, finalmente, olha moreno alto, bonito e sensual que continua sorrindo pra você, e pensa nele te beijando freneticamente, tentando apalpar tudo o que for possível. Mas você já está decidida. Olha pro Tio e diz:
- Tem troco pra 10?

4 comentários:

priquecanta 24 de fevereiro de 2009 às 10:11  

Sem dúvida, um dos textos mais interessantes que eu li nos últimos tempos.
Quando a gente lê, parece que a Laranja tá na nossa frente, falando! Expressionante...
Beijo, guria!

Newton Neto 27 de fevereiro de 2009 às 01:31  

Gostei das tendências pirigueteanas no texto. Pode vir a ser um gênero fenomenal, se joga na pista!

Muito original.

L.S. Alves 5 de abril de 2010 às 07:47  

Gostei. Bem escrito e atual.
Um abraço.

Juliana 19 de maio de 2011 às 14:08  

Nossa Senhora dos Micareteiros? Eis o único ponto fictício no seu texto. Adorei!

Postar um comentário

  © Blogger template Simple n' Sweet by Ourblogtemplates.com 2009

Back to TOP