(t)odas as (p)aixões do (m)undo

>> domingo, 17 de fevereiro de 2013

Sentada em frente ao computador, ela encara a página em branco. (pensa no novo conceito de "página", não mais uma folha de papel). Precisa escrever. Precisa inventar com palavras um mundo diferente do que se impõe pela sua percepção da realidade. Quer mudar o mundo, a percepção, a realidade.


Não consegue encontrar um eixo para o seu texto. Tudo o que pensa são fragmentos. Pensa nos últimos textos que escreveu: uma tentativa de parar de falar de si sobre si pra si. Pensou que na ficção de vidas inventadas - outras vidas, não a dela - poderia se refugiar da sufocante presença de seu eu. Descobriu seu engano, porém. A ficção só é boa quando é essencialmente sobre o eu de quem escreve. A ficção é apenas um disfarce. Fugir do próprio ego na escrita gera best sellers, mas não bons ficcionistas.

Por que ela não pode apenas querer ser uma escritora de best seller?

Não querendo escrever textos não tão bons, nem textos sobre ela mesma, calou-se. Melhor não escrever. Melhor não fazer piruetas semânticas para se analisar, melhor não despejar na rede suas angústias mesquinhas, suas conclusões de hoje diametralmente opostas às de ontem. (ela gosta da ideia expressa pela palavra "diametralmente", e de como ela soa aos ouvidos).

Melhor não.

Nesse momento de suspensão discursiva, sente ser portadora de todas as paixões do mundo. Ama desesperadamente, embora não saiba o quê. Sofre inconsolavelmente, ignorando por quem. Tem em si, como o poeta, todos os desejos do mundo. Mas ela não é poeta. Quer uma solução, não uma rima. 

Não um verso.

A rotina maçante e as grades das convenções sociais impedem-na de entregar-se a essas paixões - todas as paixões do mundo! Impedem-na ou a salvam - bem se conhecem os riscos de se viver apaixonadamente! Mas as paixões sufocadas são o solo fértil do qual nasce uma robusta e bem enraizada apatia. Uma preguiça da vida, das pessoas, do mundo, cujo oxigênio são as contantes decepções e frustrações da rotina maçante.

E assim fecha-se o ciclo.

Somente duas coisas tiram-na do contato com essa asfixiante fumaça de apatia. As viagens e a presença dele. Mas se os momentos em que goza dessas duas coisas são belos e livres, por outro lado, acentuam ainda mais a dor que lhe causa não poder se entregar em definitivo a nenhuma delas. Há sempre que se regressar das partidas, ele sempre há de regressar pros braços da outra.

Todas as paixões do mundo são na verdade duas. Impossíveis.

Ela olha novamente a "página", já não está em branco. Pensa que só, finalmente, conseguiu escrever de novo porque falou de si em terceira pessoa. Se não pode fugir de seu ego no infinito interior de sua consciência, o faz ao menos no plano discursivo. Ao menos isso, seu discurso, consegue forjar a ilusão de não ser ela sendo outra.

Ao menos isso, seu discurso.

Sente todas as paixões do mundo. Sufoca-as, por prudência ou covardia. Por covardia. Encerra-as num simulacro discursivo. No plano da realidade percebida, nada mudará. Continuará, de tempos em tempos, se expondo a situações de leveza, alegria e liberdade, apenas para sentir com maior intensidade as privações de suas impossibilidades.

O que lhe falta é coragem.

Coragem não para tomar uma grande decisão num dia histórico. Mas para fazer pequenas decisõezinhas nos dias comuns. Falta-lhe persistência, perseverança, fibra. Isso, nela, era apenas teimosia, rebeldia, capricho. Mas nem esses últimos arroubos de tenacidade lhe restam: ela está amadurecendo, e o capricho e a teimosia estão ficando para trás, sem nada que lhes substitua a não ser a inconstância.

E amanhã tudo será diferente.

Olha uma última vez o texto. Escreveu mais do que pretendia. Não quer ler de novo o que acabou de escrever: no momento em que o derradeiro ponto final for digitado, nada disso pertencerá mais a ela. Cada texto é um pedacinho a menos de amargura e ansiedade no seu coração. Afinal, é por isso que escreve. Para racionalizar sentimentos e assim deixar de senti-los. Todo o sentimento fica no papel. (papel, que agora também é só um modo de dizer). Aí vem ele, o ponto final derradeiro, ela já o avista. Sua presença é iminente, mas ela ainda não decidiu o que o antecederá. Uma frase de efeito? Um "moral da história" do texto fragmentado que acabou de escrever? Talvez fosse melhor terminar com reticências... Não, só o ponto final tem o poder de calar sentimentos e pensamentos indesejados. É isso, aí está.

Só o ponto final tem o poder de calar sentimentos e pensamentos indesejados.

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