Coletivo 201

>> quinta-feira, 18 de abril de 2013

Todo dia ela pegava o mesmo ônibus pra percorrer o trajeto de 30 quilômetros entre o trabalho e a sua casa.

Fazia isso há tanto tempo que a pequena população do ônibus já lhe era familiar. Ao entrar, cumprimentava o.motorista e o cobrador, os mesmos naquele horário desde que ela conseguia se lembrar. Eram mais que colegas de trabalho, pareciam ser amigos unidos até na hora de flertar com das meninas - coisa que as alianças de prata na mão direita do primeiro e dourada na mão esquerda do segundo não pareciam atrapalhar. 

Ao cair da noite, presa em intermináveis engarrafamentos - essas obras que não terminam nunca! - quando a vista começava a doer, obrigando-a a desistir da leitura, ela gostava de se distrair inventando as histórias daquelas pessoas com quem dividia essas duas horas diárias. Suas leituras eram sempre amenas - algum best-seller do momento, histórias românticas de meninas como ela, só que ricas, mágicas ou poderosas. Alguns passageiros mais aplicados carregavam sobre o colo pesadas apostilas de concurso. Sempre reparava numa jovem, da mesma idade que ela, que só lia clássicos no ônibus: Goethe, Shakespeare, Dostoiévski. Se perguntava se ela era uma dessas pessoas que têm vergonha de ler determinado tipo de livro, e por isso os disfarça com uma capa "séria".

Havia as estagiárias, ainda com o crachá dos seus órgãos e e o material escolar da escola ou faculdade. Os senhores de meia idade barrigudos e carecas se pareciam todos, e, não raro, estes lançavam seus olhares libidinosos e nostálgicos às estagiárias. Seu olhar sempre se enternecia ao olhar pras senhorinhas que lhe lembravam uma avó bondosa e sábia, como a Dona Benta do Sítio, e contrastavam com a irritação causada pelas senhoras que reclamavam aos berros e indignadas que os homens (que absurdo, cada marmanjo!) não lhes cediam lugar sentadas -  ao que um porta-voz masculino respondia "Não queriam direitos iguais? Pois bem, senta quem chega primeiro." 

A código de ética do coletivo diz que quem teve a sorte de ir sentado deve se oferecer pra carregar as bolsas e mochilas dos menos afortunados (ou mais atrasados) que vão em pé. Ela se oferece pra carregar a bolsa grande, cor de mostarda dessa senhora. Ao que ela responde "não, querida, obrigada". Não é que a bolsa não lhe pese: a senhora tem medo de ser roubada - não seria a primeira vez.

Num desses dias de chuva em que ninguém abre janela por medo de se molhar, e todos respiram o mesmo ar por muitos minutos, uma menina, de uns dezessete anos, que ia em pé depois de ceder seu  lugar a uma grávida de uns oito meses, desmaiou. "É jejum", disse alguém, "foi falta de ar", opinou outro. Uma senhorinha com rugas de vivida sentenciou "é menino", e os palpites pararam por aí. 

Quando estava triste, ela gostava de encostar a cabeça na janela do ônibus e pensar sobre a forma rude com que a vida lhe tratara até ali. Sempre que estava perto de um pensamento mais elucidativo, fruto de uma reflexão profunda, sucumbia ao sono despertado pelo vai-e-vem do coletivo e perdia assim sua epifania. Mais de uma vez dormiu a ponto de perder sua parada, e ter que voltar o caminho a pé. 

Às vezes, quando o motorista cometia alguma imprudência no trânsito, ou o ônibus quebrava no meio do caminho, ou ainda quando, na estação chuvosa do ano, ela chegava em casa molhada como quem estivesse a descoberto, ela pensava em culpar o sistema, acompanhar de perto as licitações, registrar sua reclamação na ouvidoria do governo.

"Nada disso", concluía. "O jeito é ganhar mais dinheiro, comprar meu carro e sair logo daqui." 

E assim se livraria do barulho, do assento duro, dos homens grosseiros, dos cobradores mau-humorados, dos atrasos,  da fumaça cinzenta, da chuva, do sol.
Se livraria dessa vidinha mais ou menos, mal-cheirosa, apertada, abafada, desconfortável.
Se livraria do coletivo.

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