#RLL - Diálogos dos mortos

>> quarta-feira, 29 de junho de 2011

As obras aqui comentadas são tema de discussões profundas e calorosas, artigos, dissertações e teses, e a fortuna crítica sobre elas está sempre aumentando e se renovando. A intenção do blog é somente apresentá-las, de uma maneira conscientemente superficial e descontraída, a quem possa se interessar, sem a menor pretensão de esgotar o assunto. Críticas, sugestões e comentários serão sempre bem-vindos!

#rll - Diálogos dos mortos
Disciplina: Literatura comparada - literatura e morte
Ano - séc. II d.C.

Luciano de Samósata, esse autor que eu só conheci porque usei na minha monografia, foi um dos maiores escritores da chamada sátira menipeia (de Menipo), um dos gêneros do qual se originou o romance, como afirma Bakhtin. Suas obras têm muitas características do que veio a ser o romance da modernidade: apelo à fantasia, descrições detalhadas, aventuras extraordinárias. Seus escritos influenciaram grandes romancistas posteriores, de Cervantes e Machado de Assis.

Lucianus
Os Diálogos dos mortos são uma coletânea de 30 diálogos curtos que parodiam os diálogos dos mortos da Odisseia, quando Ulisses desce ao Hades, no Canto XI. Se em Homero os personagens eram heróis e nobres, em Luciano, os personagens principais serão os filósofos cínicos, que, por terem se preparado a vida inteira para a sua morte, não choram a sua condição de finados, ao contrário, divertem-se às custas daqueles que continuam apegados às posses terrenas. O que era sério, glorioso e inacessível em Homero, torna-se cômico, próximo e cotidiano em Luciano - o homem é apresentado em sua condição mais miserável - Helena, a mulher mais bonita do mundo cujo rapto motivou a guerra de Troia, é agora, no mundo inferior, apenas um esqueleto como os outros. Os cínicos apontam e zombam: "é por causa desse monte de ossos que tantos homens morreram?
Diógenes
Entre os personagens cínicos estão Menipo, Diógenes (que vivia num barril, tipo o Chaves) e Antístenes. É interessante notar que, como aconteceu com muitas outras palavras, com o passar dos séculos e com a colaboração de vários fatores, como os religiosos, a palavra "cínico" foi extremamente manuseada e re-significada, chegando aos nossos dias com a conotação pejorativa de "descarado, desavergonhado", sem contar os usos populares que a definem como sinônimo de "dissimulado". 
O cínico, aquele que vivia como um cão (daí a origem da palavra) que vivia como a vida lhe permitia viver "pregava" (mais que isso, praticava) o desapego e a transgressão à ordem social, o desmascaramento dos poderosos através da ridicularização de seus defeitos, da zombaria, do riso, da sátira. O cínico se contenta com o que a vida oferece, não ostenta riqueza (como os nobres) ou conhecimento (como os demais filósofos), sabendo que tudo é passageiro.

Como eu disse antes, eu nunca tinha ouvido falar de sátira menipeia, cínismo na literatura, diálogos dos mortos e Luciano de Samósata antes de fazer a monografia. Assim, fui pra leitura sem nenhuma opinião formada, livre, leve e solta. O que mais me surpreendeu na leitura do livro foi a atualidade dos temas e a força moralista dos diálogos: representa-se a morte para se falar da vida, os mortos são criticados para que quem ainda  vive "se conserte".

Eu recomendo a leitura, que é leve e divertida. As notas de rodapé (que explicam quem é quem) ajudam o leitor a tirar maior proveito e entender melhor algumas tiradas. O livro é curto e fragmentado em diálogos, dá pra ler um de cada vez, em cinco minutinhos cada.

Trago um curtinho (p. 59 desta edição) pra vocês conhecerem (na dúvida, google ou clique nos links, que são as notas de rodapé da pós-modernidade):

DIÁLOGO III - Creso, Midas. Sardanápalo, Plutão e Menipo
Creso - Plutão, não dá mais para aguentar esse Menipo aí como vizinho. Ou tu o transferes para um outro lugar ou nós mudaremos para outra casa.
Plutão - Que coisa terrível ele está fazendo? Ele não é um morto igual a vós?
Creso - É que quando nós estamos gemendo e nos lamentando, lembrando-nos das coisas lá de cima: o Midas, que aqui está, do ouro; o Sardanápalo, do grande luxo, e eu, Creso, dos meus tesouros, ele fica zombando de nós e nos criticando, chamando-nos de escravos e de nomes feios. Com frequência eles nos perturba os gemidos com seus cantos. Em suma, está duro de aguentar.
Plutão - O que é que eles estão dizendo, Menipo?
Menipo - A verdade, Plutão. Eu os odeio. São uns desqualificados, uns perdidos. Não lhes bastou ter vivido mal, mas, ao contrário, mesmo depois de mortos continuam se lembrando e presos às coisas lá de cima. E aí eu me divirto em aborrecê-los.
Plutão - Mas não devias... eles estão sofrendo por terem sido privados de coisas não pequenas...
Menipo - Também tu, Plutão, vais ficar falando bobagens, dando crédito às lamentações desses indivíduos?
Plutão - Não, de forma alguma. Mas é que eu não gostaria que houvesse discórdia entre vós.
Menipo - Pois bem, oh piores dos Lídios, dos Frígios e dos Assírios, ficai sabendo que eu não vou parar, para onde quer que fordes eu vos seguirei perturbando, cantando, zombando.
Creso - E isso não é abuso?
Menipo - Não. Mas abuso foram aqueles atos que vós praticáveis, julgando-vos dignos de adoração, atentando contra homens livres, esquecendo-vos da morte. Por isso mesmo, continuai a gemer, privados que estais de todas aquelas coisas.
Creso - ... de muitas e enormes posses!...
Midas - ... e eu, de quanto dinheiro!...
Sardanápalo - ... e eu, de quanto luxo!...
Menipo - Muito bem, continuai as lamentações; e eu, sem parar, vou ficar cantarolando "conhece-te a ti mesmo"; na verdade, essa cantilena combina bem com esse tipo de lamentação.

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