direitos humanos x direitos dos manos

>> quinta-feira, 24 de janeiro de 2013












Como todas as manhãs, desde que começou o ano, estava eu há dois dias esperando o ônibus na parada perto da minha casa. O ônibus não passou, e eu peguei o que a gente chama de "carona" - e o detran chama de "transporte irregular de passageiros", com uma moça. No caminho, pegamos mais duas passageiras - mãe e filha, que imediatamente começaram a conversar. A motorista estava  dizendo que só parava na parada quando só tinha mulher, que tinha medo de dar carona pra homem que era perigoso etc, etc. As duas outras passageiras continuaram dizendo que sim, era mesmo, que acontecia cada barbaridade, como a gente vê todo dias nos jornais, como, por exemplo, o caso da empresária que foi sequestrada, estuprada, esfaqueada e queimada viva. Até então eu não tinha ouvido falar do caso, (e só depois vi que havia dias que imagem daquela mulher desparecida cirvulava no meu facebook), então elas contaram todos os detalhes, e como a televisão transmitiu a captura dos suspeitos, e como eles falaram do crime sem nenhum remorso aparente.

E daí a conversa foi prum rumo que eu já esperava: de como os bandidos tiveram sorte de estarem vivos, de como a cadeia era boa demais pra eles, porque tinha comida e cama, de como a polícia do df é boazinha, porque de fosse a rotan do goiás tinha matado. E a conversa continuou, porque o pai da motorista era policial, e ela contou da última vez que ele tinha levado um tiro de um cara abordado, e que ele só não matou o atirador porque tinha muita testemunha e podia dar problema, porque matar ele já tinha matado muitos antes etc etc etc.

As três falavam com tanta certeza, concordavam em tudo com tanta paixão, que eu fiquei calada a viagem toda, sentindo um mal estar físico, como se o ódio pairando me causasse náuseas.

***

Mas é claro que esse texto não é sobre minha recém adquirida sensibilidade física ao ódio alheio, ó, tadinha de mim, sofrendo as dores do mundo. Claro que não é isso. Também não preciso explicar o porque do mal estar: se você não entende o porquê de eu não admitir, nem na hipótese do crime mais hediondo, a ideia de punir também com morte o autor do crime, saia daqui e se junte aos comentaristas desta notícia.

O texto é sobre o porquê de eu não ter falado nada. Foi nisso que eu fiquei pensando depois de finalmente sair daquele carro: como nós, pacifistas, humanistas, pessoas que buscam praticar a tolerância e incentivar uma cultura de não-violência podemos competir com um ódio tão enraizado, cultivado, assistido e incentivado por datenas e afins, que tem uma força que atravessa verticalmente todas as classes sociais, do pobre pobre passando pela classe média média, chegando aos ricos de verdade. 

Gente pra quem a violência praticada em forma de arte ou ficção não é catarse (a gente bate no deputado corrupto junto com o capitão nascimento no filme pra não precisar bater de verdade, a gente esfaqueia os caras malvados junto com o Dexter na série pra não precisar esfaquear de verdade), mas só um ensaio pro que eles realmente querem e precisam fazer - e farão assim que tiverem a oportunidade.

O que fazer? Como usar uma arma diferente que não seja usar o mesmo discurso e ENSINAR NA MARRA ESSE POVO TÃO BÁRBARO QUANTO OS BANDIDOS QUE ELES TÊM QUE RESPEITAR OS DIREITOS HUMANOS, CACETE? 

Como responder a esse ódio com uma coisa diferente do ódio e, finalmente, romper esse ciclo? Dalai Lama, me ensina?

***

Domingo, ouço meu crismando de 16 anos, contar, rindo, que passou o natal no hospital e levou um tiro na perna. Levou um tiro porque reagiu, fez que ia entregar a sacola que o assaltante pediu e em vez de entregar saiu correndo pra casa. Ouviu o disparo, e só percebeu que tinha sido atingido na perna quando chegou em casa e viu o sangue. Por que você reagiu? pergunto, dando bronca, Já perdi a conta de quantas vezes me assaltaram e eu não fiz nada. Dessa vez tava do lado de casa. Achei que dava pra correr e corri, ele responde.

Não foi a sacola que ele não quis entregar, foi a dignidade. 

Alguns meses antes, ele poderia ser o menor que atirou. O trabalho que nós fizemos na catequese (sim, a mesma igreja que acolhe os fariseus que comentam coisas assim, dá muitos bons frutos), e, de modo especial, o trabalho que eu tive com ele, fez com que ele hoje não fosse atrás de uma vingança, de identificar o ladrão e buscar um acerto de contas.

***

Mas eu também já passei da fase idealista de querer mudar o mundo. Passei também da fase achar que não posso mudar nada, e ficar sofrendo calada com a minha indignação. A primeira fase é megalomaníaca, a segunda é fruto de um egoísmo disfarçado de realismo. As duas coisas não produzem nada, não mudam nada, mas são ótimas pra encher páginas e páginas de uma teoria - ou de uma rede social - que não muda a vida de ninguém.  

Estou na fase de pensar no que eu posso fazer pra modificar essas duas situações que presenciei nessa semana: a mentalidade de quem acha que defender condições minimamente descentes de vida pros presos é o mesmo que compactuar com a bandidagem (querer que a polícia não mate o estuprador ladrão assassino não é se indignar menos com o estupro, roubo, homicídio, peloamordedeus! é querer que o assassinato, o roubo e o estupro parem SEJA CONTRA QUEM FOR! é odiar o crime, não o criminoso, é odiar o pecado, não o pecador - é a atitude mais básica que se pode esperar de um cristão: compaixão! de um humanista: tolerância!)
E, mais importante e essencial: impedir que esses meninos de dezesseis anos andem por aí com armas matando e morrendo por uma sacola.

Eu tenho que poder fazer alguma coisa. Se não, pra que que serve ter estudado o que eu estudei, ler o que eu li, conhecer o que eu conheço, ter a família e os amigos e o emprego que eu tenho?  Vou me afogar nessa riqueza de pensamentos e experiências e viver de mim, pra mim, por mim? Não. Isso tem que transbordar de algum jeito, frutificar, chocar, questionar, dialogar, transformar e ser transformado.












Isso não é um desabafo: é um pedido de ajuda. 

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não beijei (crônicadeviagem)

>> terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Renato se apaixonou por uma garota de programa de luxo? De verdade? Isso é tão romântico, tão Paris, ou Rio de Janeiro do século XIX e suas cortesãs! Mande-o ler Lucíola! (pensando melhor, não mande, ele pode querer que a tal Michele tenha o mesmo destino da pobre Lúcia...!)

Creio que a dor do rapaz foi causada mais pelo atordoamento de ver aquele beijo do que pela traição em si. Talvez se ela tivesse contado, ou se ele só percebesse uma tensão sexual entre os dois, a reação não teria sido tão, digamos, drástica. Mas o beijo... aquele beijo! É quase como em Estômago, tirando a parte trágica...

Sem beijo visto, sabido e comprovado, não tem traição. 

João Pessoa, 2011.
Praia, céu, estrelas e um calor diminuído pela brisa vinda do atlântico. Era a última noite dessa viagem, a primeira desde que eu começara a trabalhar. Estava com dois amigos, feitos mais cedo naquela mesma noite, curtindo o gosto que sabia a "juventude" (se usa "sabe a" em português? acho essa expressão tão bonita!), de não ter que dirigir, de andar pela rua deserta, comprar bebida no mercado e beber na beira da praia, à luz do luar - tudo aquilo que ei deveria ter feito na adolescência, e que eu não teria a chance de fazer de novo ao voltar pra brasília.

Voltando pra casa, pro trabalho, pro namorado, lembrei muitas vezes da sensação de liberdade que tive naquela noite. Contraditoriamente, lembrei com um pouco de remorso. Ainda estava em dúvida se havia traído ou não meu compromisso ali também. Um dos amigos quis, digamos, estreitar os laços da amizade que nos unia. Não cedi, é claro, mas participei do jogo de sedução inspirado pela brisa que vinha do Oceano. Traí ou não traí? Será que a traição começou no momento em que eu permiti que o outro tentasse me seduzir? Essa simples conivência com o ataque do outro já é traição? 

Eu, como namorada traída em potencial,  diria, sem pestanejar: Claro! Como a namorada prestes a ser infiel, respondo que não: é até melhor deixar que o outro tente - para que a minha resistência tenha mais valor!

E resisti, de fato. Beijo não houve. Contra ele não haveria argumento teórico possível. Aceitar inerte as carinhos daquele que investe contra suas resistências, procurando miná-las com a força das reações do seu próprio corpo, é, acredito eu, desculpável. O beijo, não. O beijo é um acontecimento, uma iniciativa, uma manifestação ativa do seu desejo de experimentar o outro! Não há imparcialidade no beijo! Há dois atores rendidos um ao outro, conquistadores e conquistados ao mesmo tempo. Dominadores de quem os domina!

(Talvez esse seja só um pensamento conveniente para manter minha consciência tranquila)

Mas, voltando ao nosso amigo que presenciou o beijo indesculpável, me comprometo a tentar reverter esse coração rancoroso ao mesmo campo fértil para o amor que ele era antes. Vou te provar que existem amores na nossa cidade, sim! Não os inspirados pela brisa do mar, é verdade... mas os de outro tipo, inspirados pelo vento paciente e constante que dá a forma, torta, é verdade, mas única, das árvores do cerrado.

Mas isso você só vai perceber quando, como eu, não puder sentir mais esse vento.

Continue me mandando os resultados dos seus arroubos literários! Eles me mantêm mais perto de casa, mais perto de você.

Com saudade e afeto,
Alice.




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Uma geração sem jovens

>> domingo, 20 de janeiro de 2013

Compartilho com vocês uma reflexão de um domingo à noite.
Leiam desarmados e se ponham a pensar e a sofrer nossa geração comigo.

Minha geração será conhecida no futuro com a geração sem jovens. 

É noite de domingo e eu me detenho a ler com atenção o edital do último concurso público lançado. Cogito fazer um cursinho preparatório. Mais de dois mil reais. Descarto a possibilidade. Navego aleatoriamente por sites e blogues de "concurseiros". O que leio deveria me deixar intimidada, mas me deixa... triste. Coisas como "níveis" de concurseiros: básico, intermediário, avançado. Concurseiro é carreira. Manual do concurseiro, guia do concurseiro, mandamentos do concurseiro. Quase um novo credo a ser professado.

Tenho muitos amigos concurseiros - ou melhor, tinha, pois concurseiros sérios, avançados, comprometidos, os únicos que têm alguma chance de passar (ou se alcançar o céu dessa religião), é claro, abrem mão da sua vida social. Quando eles finalmente passarem num concurso (não em "um", mas no ideal) e retomarem suas vidas normais, terão perdido alguns anos de suas vidas se lobotomizando em cadeiras de cursinhos. Em compensação, serão estáveis nos seus trabalhos em três anos - poderão, antes dos trinta, sentar nas cadeiras giratórias de suas repartições e esperar o casamento, os filhos, as viagens de férias, a aposentadoria e a morte (na melhor das hipóteses nessa ordem).

É triste. Sua opinião sobre esse texto talvez mude ao descobrir que essa que vos fala é uma concursada. Para mim, o concurso foi uma forma de mobilidade social - hoje tenho o padrão de vida e o nível de independência que a maioria dos meus colegas já tinha ainda na Universidade, sem trabalhar. 
E foi também um golpe de sorte, destino, senso de oportunidade: estudei sozinha, por dois meses, com uma apostila.

Mas voltaremos à minha história pessoal daqui a pouco.

Os meus amigos que assumiram a "carreira" de concurseiros são, em sua maioria, de classe média. De outra forma não teriam como pagar as exorbitantes mensalidades dos cursos preparatórios. Isso me faz pensar que os seus pais, a geração anterior, ralou bastante pra chegar nessa classe média. Muitas vezes já com família. O esforço deles foi motivado pela preocupação com o bem estar futuro de uma família - de filhos - que já existia.

Criaram esses filhos com tudo do bom e do melhor, com muito leite com pêra, para que eles pudessem estudar sem precisar trabalhar, estudar nas melhores escolas, cursar o melhor curso na melhor faculdade. E esses filhos fizeram isso. Tinham tudo pra ter sonhos. Tinham segurança e comodidade na família para se arriscar por eles: serem bons e realizados atores, professores, advogados, arquitetos, médicos, engenheiros.

Era uma geração que tinha tudo pra ser feliz. Realizada. Era só isso, filho: tenha um sonho, siga sua vocação, trabalhe com o que você realmente gosta, porque nós, seus pais, te daremos o apoio que você precisa pra começar. Você não precisa se preocupar em ganhar muito dinheiro, nós fizemos isso por você. 

Mas não. Filhos de famílias com dinheiro geralmente têm uma única preocupação: fazer tanto ou mais dinheiro para se manter no mesmo padrão de conforto, mordomia e status em que cresceu, não importando que para isso tenha que fazer um trabalho que odeia pro resto da vida.

Não faz sentido! Pra que aqueles pais ralaram pra dar do bom e do melhor pros filhos, então? Pra que quando ele chegasse aos vinte anos dizer: opa, filhão, viu como é bom ser rico? experimentou o bem-bom? ótimo, agora vá tornar a sua vida miserável, como nós tornamos a nossa, pra continuar assim!

Aí vai o ex-futuro-jovem, com vinte e poucos anos, se matar de estudar pra passar num concurso público - que é o que tem nessa cidade - pra manter o alto padrão de vida que os pais deram pra ele, pra dar um padrão de vida ainda maior pros filhos que ele ainda não tem. Vai lá o rapaz ou a moça com a ilusão de que, finalmente, quando ele passar no concurso dos sonhos, ele vai ter tempo e dinheiro pra fazer o que quiser da vida. Não vai, filho. Dinheiro, talvez. Tempo, não. Serão 30 dias de férias em um ano inteiro. 8 ou 6 horas por dia fazendo um trabalho que você não gosta, muitas vezes detesta. Nenhum respeito à sua vocação, ao chamado místico do mundo para que você exerça o que você faz de melhor. Talvez você nunca saiba qual é esse chamado místico - provavelmente você simplesmente não vai acreditar que ele exista.

Uma geração inteira de jovens que não foram jovens. Foram concurseiros. E depois jovens velhos, que com com 22 terão 40. Ou jovens adolescentes, que vão curtir o que deviam ter curtido aos 22 com trinta.

Eu não entendo. Voltando ao meu caso, acredito, sim, no concurso público como forma de mobilidade social, como forma de me livrar de um balcão de loja, de um caixa de fast food. Acredito nele como um meio de lançar bases que meus pais não puderam ou não quiseram lançar: mas bases de onde eu possa um dia me jogar em busca dos meus sonhos. E, por favor, que eu ainda seja jovem quando puder - ou tiver a coragem de me jogar!

Não como um objetivo de vida, uma carreira a ser perseguida, um fim em nome do qual eu sacrifique os anos da minha juventude. 

A não ser que minha vocação fosse a da burocracia. Burocratas natos se darão muito bem no serviço público!

Quanto mais eu penso, mais tenho certeza de que salário nenhum paga esse meu sacrifício de energia que eu tenho no meu trabalho, muito menos o que eu ganho. Salário nenhum paga essas trocentas crises de meia idade e frustração que eu já tive dos dezenove aos vinte e dois anos. Estabilidade nenhuma paga o desespero de ver pela minha frente mais trinta anos de insatisfação e burocracia (cruzes, só de pensar me dá arrepios!). Função gratificada ou DAS nenhum pagam o esforço que é dividir minha vida em "eu no trabalho" e "eu fazendo o que eu mais gosto de fazer na vida = literatura". 

E o que me impede de jogar tudo isso pro alto agora é o fato de já ter vendido os próximos anos de salário desse emprego pro banco, adiantados. Vendi por um conforto que eu não preciso - pelo menos não precisava até ter. Daí que o único jeito de comprar minha liberdade de volta é ganhando mais dinheiro num emprego que pague mais. Daí voltamos pro que motivou o começo desse texto: vou ter que fazer e passar no tal do último concurso lançado.

Entendam que esse texto não quer apontar o dedo pra ninguém. É uma reflexão, um questionamento. E a primeira a lê-lo com identificação e tristeza sou eu, que ainda não sei ao certo se é melhor ou pior ter consciência da prisão em que meus sonhos estão encerrados.

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713 Norte (nãoexisteamoembsb)

>> quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Alice,

No quesito "stalker", sua história "barrou" a minha (como você diz, rs). Hoje não vou contar uma história minha, mas a de um amigo. Renatinho, lembra dele? Claro que lembra, sei que você tinha uma queda por ele, não negue! Então, acabo de encontrá-lo no grande circular, e me lembrei da história que ele me contou já há alguns meses... É um desafortunado caso de amor. 

Ela era linda, fazia jornalismo, morava no fim da asa norte... Se fosse uma história inventada não teriam juntado tantos estereótipos. Mas, estereótipo ou não, o fato é que o caso aconteceu.
O primeiro encontro, fruto de um puro acaso do destino, foi na dom bosco do ceub. Os dois pediram uma dupla quando só havia dois pedaços da última fornada de pizza. Renato quis ser cavalheiro: "Pode ficar, eu espero a próxima pizza", mas ela insistiu para que cada se servisse de um pedaço daqueles enquanto esperassem juntos a próxima fornada de massa, queijo e molho de tomate.

Assim foi, e a partir de então, quase sempre naquele mesmo balcão, os dois se encontravam todo dia e a vontade crescia, como tinha de ser. Até que um dia ele finalmente ele propôs que os dois se vissem fora dos muros da faculdade, e ela disse sim. 
Cinema, claro. Mas nenhum dos dois foi capaz de dizer se as indicações a prêmios daquele filme foram justas ou não: ficaram de olhos fechados e bocas e mãos ocupadas dos trailers aos créditos.

A essa sessão seguiram-se outras tantas (falta de criatividade dos namorados ou de opção na cidade?), e tudo ia bem. 

Certa noite em que sua amada não podia sair porque já havia marcado um outro compromisso, Renato aceitou acompanhar o pai em um coquetel ao qual compareceram todos os figurões do Direito da Capital Federal.

                                                     Fonte
Entediado entre homens velhos com assuntos mais velhos ainda, Renato viu Michele - Michele, ela se chamava - linda, tão linda quanto ele nunca a vira antes, acompanhada de um senhor, de um velho. Ainda esperançoso, Renato pensou em todos os possíveis graus de parentesco entre os dois, julgou até mesmo encontrar alguma semelhança na fisionomia dos dois que evidenciasse laços de sangue. 

Por alguns segundos alimentou essa esperança: os segundos que antecederam o beijo indecoroso e ardente com que o velho cobriu sua Michele.

Renato inventou uma súbita indisposição para o pai e foi embora de táxi, antes que Michele o visse. Enquanto o motorista seguia na velocidade da via, murmurando qualquer coisa sobre os novos pardais, máquinas de fazer dinheiro para o governo, as imagens giravam caleidoscopicamente na mente de Renato. Michele... fazia parte da lista rosa... há quanto tempo? Assim que pagava a faculdade? a academia? bolsas, roupas, tudo? até aquele primeiro pedaço de pizza que dividiram juntos?

Você, Alice, pode imaginar o quão perturbadora esses pensamentos fizeram da noite do meu amigo desiludido. Na manhã seguinte, Michele recebeu dele uma sms: "acabou".
Ele não quis discutir, não fez escândalo e nunca explicou pra ela o porquê de um término tão precipitado e seco.

Mas desde então Renato não pensa em outra coisa a não ser estudar para ser, ele mesmo, um figurão do Direito, e poder um dia ser um dos clientes privilegiados que tem acesso à lista rosa da capital. 

Não existe amiga, não existe amor em em BSB, e até mesmo os corações mais férteis para o florescimento de grandes paixões, com o tempo e seguidas decepções transformam-se em um lodo de ganância e sede de poder.

Com essa imagem forte despeço-me, querida amiga, e confesso que estou começando a gostar dessa brincadeira epistolar tão anacrônica, que faz pulsar minha veia literária que eu já julgava ressecada pelo clima dessa cidade.

Com afeto e saudade, 

João Lucas


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Poética do Sertanejo Universitário #2

>> terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Você, amiga solteira em Brasília, essa cidade fria e sem amor onde todo mundo é metido (e eu espero que você não seja!), não sabe mais onde ir pra paquerar e dar uma levantada na autoestima? Pois a balada sertaneja é a melhor pedida! Dispa-se dos seus preconceitos musicais e jogue-se num dos oasis de sociabilidade dessa cidade, onde você ainda poderá conhecer alguém que não seja necessariamente amigo de um amigo.

Caso você nunca tenha sido exposta a esse tipo de interação social, não se preocupe! O sertanejo universitário (que traz na aba o arrocha) é o estilo mais autorreferenciado da atualidade. 
- Como assim, Bial Bruna Silfer?

No primeiro post que eu escrevi sobre a poética desse estilo, o tema que mais aparecia nas letras era o da revanche sentimental: bom moço/boa moça é sacaneado/leva pé na bunda do namorado e, em vez de curtir a fossa na mesa do boteco, se joga na balada, pega todas e grita EU NÃO PRECISO DE VOCÊÊÊÊÊÊ!

Agora é diferente! (pra vocês verem com os gêneros se transformam rapidamente nos anos 10). O tema mais presente nas letras da balada de sertanejo é ~pasmem~ a balada de sertanejo! Se antes o bom moço/boa moça precisava levar o pé pra acordar pra vida e pegar sem se apegar, agora não: a galera já se joga na balada como se não houvesse amanhã. Então, toda a experiência de vida dessa galera é a balada! Não tem amor não-correspondido pra tentar esquecer, não tem traição pra vingar: a profundidade da vivência amorosa de quem canta e escuta a música acaba naquele carinha que não pegou seu telefone.

Então, cara amiga que está chegando agora nesse mundo, não se preocupe em aprender com antecedência os padrões comportamentais desse nicho social. A dica é simples: presta atenção em cinco letras aleatórias que tocarem na balada e você já vai saber como tudo funciona. Duvida? Vamos aos exemplos textuais que comprovam nossa hipótese:
Na sexta-feira (em todas elas) começa o bolo doido. Depois, sábado, na balada, a galera começa a dançar. Se você for a menina mais linda, esteja preparada para ouvir a cantada infalível: nossa, nossa, assim você me mata! Ai, se eu te pego! , sussurrada pelo cara popular que chega na balada, e todos param pra ver.
Dúvidas sobre como flertar? A música ensina também! É só você olhar pra ele querer te pegar!
Prestando atenção nas letras você também vai saber que nesse mundo vale mais quem anda de carrão - mas tem espaço pros quebrados que sabem fazer o lê lê lê!

É claro que no começo a gente se sente assim, confusa com aquele tanto de homem vestindo a mesma camiseta da hollister, mudando só a cor ou as listras (até quando?), fica puta com os caras de fim de balada puxando nosso cabelo, fica indignada de ser chamada de interesseira mesmo em cada letra que tem carro e "bebida de graça". E eu gostaria de te afirmar, amiga leitora, que essa sensação passa, que com o tempo você acostuma - mas eu não posso: nunca me acostumei.

É claro também que eu não tou incentivando ninguém a tomar pra si esse conjunto de valores do moleque playboy que liga pra mamãe da balada, e que acha que é só chegar batendo de carrão e oferecendo bebida pra pegar mulher - mas também não vou te julgar se você fizer isso, colega. Tá, vou sim.

                                          "Tenso" é fazer tudo isso com o dinheiro do seu pai.

Essa nova poética das letras é reflexo dessa adolescência eterna de minas e caras que medem a vida pela agitação do fim de semana - e pelo quanto eles ficam bêbados e por quantas pessoas eles pegam. Daí que o problema (se existe um problema), é claro, não é a música, que é toda autorreferenciada, ou seja, faz referência sempre a si mesma, ao estilo de vida de quem a faz e de quem a consome, mas, sim, essa geração que toma esses valores como absolutos.

Se a música vende e faz sucesso (e muito sucesso!) é porque tem mesmo gente que pensa que mulher se compra, e tem mulher que se vende, que pai e mãe tem que bancar farra de filho mesmo, e tem pai que banca, que ter um carro, ser bom de cama e poder bancar bebida são as qualidades do homem que toda mulher procura, e tem mulher que procura esse cara mesmo. E é isso que mais me preocupa: não o ritmo que é dançado, não o pegar sem se apegar, não os vestidos apertados e curtos, não as letras esvaziadas de qualquer valor artístico. Mas essa ideologia-mãe de tudo isso: machista (ainda mais do que o funk carioca, por exemplo, onde, pelo menos, a mulher também canta e não é uma bunda embalada a vácuo balançando um cabelo loiro de chapinha) e insuportavelmente esnobe (tem dinheiro? ok! não tem? vaza! ah, seu pai morreu, mas pelo menos você ficou rico e comprou um camaro? ok de novo!), fruto de uma geração jovem  ociosa de classe média que de sertaneja não tem nada, e de universitária, tem só a matrícula em uma faculdade de seriedade duvidosa.

Pensando bem... Você, amiga solteira que mora em Brasília, essa cidade fria e sem amor onde todo mundo é metido (e eu espero que você não seja!), e que não sabe mais onde ir pra paquerar e dar uma levantada na autoestima: supondo que você seja inteligente, esqueça o conselho que eu dei ali em cima... Ou, se decidir se aventurar mesmo na balada sertaneja (afinal, é a juventude, né, podemos fazer esse tipo de besteira) - acione o botão no seu cérebro que bloqueia seu senso crítico responsável por identificar e condenar padrões de comportamento preconceituosos e machistas, e seja feliz.

O meu quebrou da última vez que eu fui no Garota Carioca.

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do risco de se sonhar errado (crônicadeviagem)

>> segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

João Lucas,

Se dependesse de mim estaríamos, sim, trocando longas cartas que cruzariam o Atlântico, escritas a pena e em papel timbrado e selado com nossos brasões pessoais! Uma parte de mim ainda vive no século em que se fazia isso, e você sabe. Mas me contento com esses emails. Assim você pensa em mim enquanto os escreve, depois pensa na minha resposta, depois lê a resposta e começa a pensar na sua... e então estamos ligados, não só pelas palavras que trocamos, mas por esse pensamento contínuo que é mais eficiente que qualquer transmissão de dados!

Acho que sua história acabou como aquelas flores sim, mas não por ser sem vida e sem perfume, antes por ser perene: A garota da catedral não vai esquecer do rapaz simpático que lhe entregou as flores, enquanto elas durarem, ou seja, por muito tempo ainda. As flores do cerrado, como seus amores, podem ser, sim, secas: mas não morrem.

Mas acho que você nem foi muito stalker.  Como prometi, vou te contar as histórias da - das minhas viagens, mas esse seu momento psicopata me lembrou do meu psicopata favorito.

No último Natal que passei aí com minha família, me lembro bem: faltavam dez minutos para que o relógio marcasse onze da noite. Era véspera de Natal, e meu telefone tocou. O número era desconhecido, antecedido pelo código que indicava uma ligação do Rio de Janeiro. Alô?, Alô, tá me ouvindo?, Oi... é você!. Era ele. Ele desejava um feliz natal para "sua" moreninha. 

Tanto tempo depois, e ele ligou de novo! 

Saquarema, 2007
Cinco anos antes, nas férias de verão, viajei com minha família pr'aquela praia que vocês que sabem  surfar adoram. Sentia o sal do mar, ouvia o barulho das ondas, olhava o azul do céu, e me sentia plenamente feliz. Celebrava ali, com a família e a natureza, a minha aprovação em um concorrido vestibular, da qual tive notícia dias antes. Uma nova vida pela frente me esperava, e começava ali, abençoada pelo vai-e-vem das ondas.
Ouvir por perto o sotaque característico – e, aos meus ouvidos, sempre irritante –  do lugar me fez parar de sonhar com a minha atraente vida futura e desviar o olhar para o jovem que se aproximava e dizia algo aos meus irmãos, que brincavam comigo no mar.

“Olha, você tem que fazer assim, se não a onda te leva pra praia”. Ele falava com meu irmão mais novo, que desajeitadamente tentava “pegar jacarezinho”.

Horas depois, naquele mesmo dia, eu esperava no shopping da cidade reencontrar o surfista da praia. Pensava na aventura que contaria ao voltar pra minha cidade: havia conhecido um surfista na praia e marcara um encontro! Um amor de verão! Ótimo jeito de começar minha vida nova!

Ainda estava perdida nesses pensamentos quando ele chegou. Ele, dois ou três anos mais velho que eu, morava na capital do estado, mas sempre passava as férias na casa de verão que a sua família tinha naquele pequeno paraíso para surfistas profissionais e amadores. Naquela manhã havia ido à praia sozinho, e sua avermelhada pelo sol, que contrastava com o intenso azul de seus olhos, indicava que fazia isso todas as manhãs.


Ali estávamos, nós dois, depois de um encontro fortuito na praia, e dele ter reunido toda sua coragem para me chamar pra sair, como me contou mais tarde. Saímos, pois, e sob o entardecer alaranjado conversamos a mais não poder. Eu, radiante com os dias passados no litoral e com a expectativa da vida nova que teria na faculdade, experimentava o sabor da aventura de meu primeiro amor de verão digno desse nome. Ele, rendido a um singular encantamento, admirava a vivacidade com que eu lhe contava sua história e seus sonhos.

Agora, recordando aqueles dois dias, não sou capaz de precisar em qual momento a excitante aventura amorosa de verão começou a ser não tão excitante e menos ainda amorosa. Lembro-me somente que, a certa altura, quis correr para longe ao ouvi-lo falar das coisas maravilhosas que nós dois faríamos se eu não tivesse que retornar à minha cidade no dia seguinte:

“Se você ficasse, eu faria um jantar pra você, nós jantaríamos à luz de velas... decoraria a mesa com flores... faria um carinho nos seu rosto e beijaria seus lábios suaves... ao som de violinos... e na manhã seguinte eu te prepararia o café com tudo o que você mais gosta... e de tarde a gente passearia pela praia, faria um piquenique no parque... e eu acariciaria seus cabelos... assim...”

“Graças a deus que vou embora amanhã”,pensei. Mas o que eu disse foi “é uma pena que eu tenha que ir, né?” E a essa seguiram-se mais descrições melosas e ricamente adornadas de felicidade da parte dele, o que só aumentou a minha sensação de náusea e uma estranha e inesperada certeza de que eu havia sonhado a vida toda com um homem me dizendo aquilo – e sonhei a vida toda errado!

Naquele momento descobria que essas coisas propagadas como românticas não tinham nenhum valor se não fossem feitas com a pessoa certa. Descobria ali que o romance não está nas velas, nem no perfume das flores, ou nos doces acordes dos violinos: mas na entorpecimento provocado pela paixão. Sem paixão aquilo tudo parecia apenas um pouco ridículo e insuportavelmente sufocante.

Um pouco ridículo e insuportavelmente sufocante ele pareceu no dia seguinte, quando, num ato de amor desmedido, atravessou a cidade de bicicleta para se despedir (outra vez!) antes do primeiro raiar do sol.
Feita a última e dramática despedida na porta do meu hotel, voltei para a minha cidade, ainda intrigada com o fato de o amante dos meus sonhos ter se tornado, ao materializar-se na vida real, tão maçante e repetitivo.

Cinco anos depois, eu ainda não sei o porquê de, o que para mim foi uma aventura de dois ou três dias, ter sido provavelmente a grande história de amor da vida dele. Desde aquele verão, meu telefone recebe uma ligação do Rio de Janeiro no meu aniversário e nas vésperas de Natal e Ano-novo. E eu ainda pode sentir, na voz emocionada no outro lado da linha, o mesmo tom sonhador que, ao entardecer na praia, me prometeu a vida mais romântica que eu jamais teria.

Mas não me recusei a atendê-lo, não me recusei a encontrá-lo quando ele visitou minha cidade e me quis ver. Minha condescendente consciência enxerga nesse meu ato uma grande generosidade ao alimentar as fantasias amorosas de alguém que aparentemente só tem isso – fantasias amorosas. Mas um olhar mais atento e menos complacente dirá, com razão, que a mim pouco me custam alguns minutos de atenção em troca do grande afago no ego que é saber-me inspiradora de uma paixão à distância que já dura cinco anos.

Talvez um dia, numa dessas ligações, quando eu voltar pra casa, tenha a coragem e a honestidade de dizer que acho isso loucura – amar uma pessoa com quem se esteve por três dias, e que nunca, em hipótese alguma, jamais corresponderá a esse amor – e irei partir, ao mesmo tempo, o coração do jovem enamorado e o espelho de minha vaidade.

Mas, por enquanto, deixo essas confidências só para você, João. Um dia publicaremos nossa correspondência, e tanto meu stalker carioca quando a sua misteriosa mineira saberão os bastidores das histórias das quais foram protagonistas. Um dia.

Continue me contando as histórias de desamor da nossa cidade. Troco suas crônicas de além-mar pelas minhas efêmeras aventuras em viagem, e assim vamos construindo esse mosaico de memórias compartilhadas, esperando pelo nosso reencontro, que se você cumprir sua promessa de vir me visitar, não demorará muito.

Com saudade e afeto,
Alice

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A garota da Catedral (nãoexisteamorembsb)

>> sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Minha cara amiga,

Ainda acho boba essa sua relutância em usar o facechat ou whats app pra falar comigo! Nem no skype você quer entrar! Mas ok, aceito trocar esses emails com você, por mais antiquado que seja. Mas só porque não quero de jeito nenhum ficar sem suas notícias de além-mar. E é melhor eu parar de reclamar, antes que você resolva só se comunicar por carta! Você e essa mania vintage...

Como prometi no último email, seguem os detalhes da minha aventura romântica com a menina da Catedral. Mais '"aventura" do que "romântica", como você vai ver.

Sempre gostei de ir caminhando do meu trabalho até a rodoviária, pra evitar o engarrafamento das seis da tarde, pelo prazer de caminhar, pra sentir pelo menos nesses momentos que eu vivo numa cidade de verdade, com pessoas de verdade.

Desde o fim de outubro, quando começou o horário de verão por aqui, tenho saído uma hora mais tarde. Já no primeiro dia dessa nova rotina eu a vi, sentada em frente à Catedral. Não sei porque reparei nela, havia outras tantas pessoas sentadas por ali, ou tirando fotos da igreja, ou caminhando em direção à rodoviária, como eu.... Acho que o que deteve meu olhar foi o all star dela! Isso, era vermelho, igual ao meu, aquele que eu sempre usava na UnB, lembra? O tênis dela me lembrou o meu, e há quanto tempo não o uso, desde que comecei a trabalhar... enfim, por isso reparei nela. Era uma menina de uns vinte e poucos anos, "bonita", pensei na hora (ok, confesso que "bonita" pode não ter sido exatamente a palavra que me veio à mente).

Segui meu caminho. No dia seguinte lá estava ela, sentada no mesmo lugar, dessa vez lendo um livro - que eu não pude identificar qual era, antes que você pergunte. Sei muito bem que você julga o caráter das pessoas pelos livros que elas leem em público.

E assim se seguiram todos os dias. À mesma hora eu passava em frente à Catedral, e ela estava lá, sentada, olhando o trânsito, ou os turistas, ou o céu que emoldurava o templo com diferentes cores e tons. Nunca repetiu aquele All Star vermelho do primeiro dia em que a vi.

Depois do primeiro mês em que a via todos os dias, comecei a pensar em formas de desvendar o mistério da menina da Catedral. Descobrir o que ela fazia lá, todo dia, à mesma hora. Quem ela estaria esperando? O que estaria esperando? Qual era aquele bendito livro que não terminava nunca? 

Era loucura, claro, eu precisava tirar essa ideia fixa da cabeça. Comecei a sair dez, quinze minutos mais cedo do trabalho. Ela estava lá. Depois, passei a sair quinze, vinte minutos mais tarde. Lá estava ela. Cheguei a temer que ela percebesse essa coincidência diária e desconfiasse de que eu fosse algum tipo de psicopata ou stalker (o que de certa forma eu estava me tornando). Mas ela nunca pareceu me reconhecer, nem nas duas ou três vezes que nossos olhares se cruzaram por mais de alguns se segundos.

Semana decidi dar alguma concretude ao nosso relacionamento absurdamente platônico, ao vê-la mais uma vez no lugar já de costume. Concebi o plano da nossa aproximação. No dia seguinte, comprei de um daqueles senhores que vendem flores secas em frente à Catedral um pequeno arranjo: sempre-vivas laranjadas, rodas para-tudo vermelhas, capim dourado e pimentinhas prateadas. Juntei ao ramalhete um envelope azul, contendo um bilhete que dizia:

Aceite essas flores como prova de um encantamento sincero. Há semanas passo em frente à Catedral e vejo você sentada, todos os dias, no mesmo horário. Estranho, mas já me sinto como um velho amigo seu. Mas eu nem sei o seu nome. Me dê a chance de descobri-lo amanhã, nesse mesmo horário. Se achar tudo isso louco demais, fique ao lado do Evangelista Lucas, e eu saberei que você leu este bilhete, mas não quer conversar, e respeitarei sua vontade. Se, entretanto, estiver disposta a fazer um novo amigo, faça companhia ao Evangelista João, e eu me aproximarei.
Vejo você amanhã.



Eu sei, você deve estar rindo, achando que eu pirei de vez, e que se fosse com você, no dia seguinte eu encontraria a polícia me esperando. Pode rir! Mas admita que fui ao menos criativo, ainda que covarde. Pois bem, entreguei a ela o arranjo e o bilhete, e saí sem olhar pra trás. Acho que a curiosidade superou o espanto dela, porque não gritou nem foi atrás de mim.

No dia seguinte, mal consegui trabalhar, pensando em qual seria a resposta da minha bela misteriosa. Foi com mil "borboletas no estômago", como você diz, e o coração acelerado que caminhei em direção à Catedral naquele entardecer.

Nem Lucas, nem João: a minha belle de jour estava de pé - foi a primeira vez que não a vi sentada - ao lado de Mateus. Eu não havia feito um código para Mateus. Não sabia o que Mateus significava.

Ao me ver, ela sorriu, entre surpresa e envergonhada. Só então me dei conta do quão constrangedora era aquela situação. Mais corajosa do que eu, foi ela quem quebrou o silêncio. "Obrigada pelas flores. E pelo bilhete. Não "respondi" como você sugeriu porque eu queria falar com você, mas não estou disposta a fazer um novo amigo. Não é que eu esteja assustada, ou te achando maluco - bom, talvez um pouco. Mas é que ontem seria o último dia em que você me veria aqui. Hoje vim só te encontrar. Amanhã volto pra minha cidade. Sou de Minas."

Mineira! Estava explicado o porquê de ela não ter chamado a polícia pra mim! Mineiras são sempre simpáticas!

A conversa não demorou muito mais que isso, ela tinha que ir embora. Antes que ela fosse, agradeci por ter ido naquele dia, disse que a achava muito bonita, falei meu nome, e, muito importante, perguntei: "Por que Mateus?"
"É o nome do meu namorado", ela respondeu. "Ele vinha me buscar aqui, todos os dias, mais ou menos nesse horário. Falando nisso, ele chegou, preciso ir. Obrigada pelo bilhete, vai ser uma boa lembrança de Brasília. Além das flores!"

E foi embora. Só algum tempo depois percebi que eu, idiota, disse meu nome mas não perguntei o dela, nem ela se lembrou de o dizer. Nem o título do livro. Ficará conhecida apenas como "A garota da Catedral". Que namorava o Mateus!

No fim, a história me saiu como as flores que comprei: bonita, mas sem perfume. Igual a essa cidade que você abandonou.
Volte logo para rirmos juntos dessa minha desventura!

Com afeto e saudade,

João Lucas








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Faça amor, não faça a barba!

>> quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Texto meu publicado aqui.

Há aqueles que contam a história de seus amores pela inflexão de cada olhar, pelo tom da voz, pela intensidade do toque. Nossa história se lê na tua barba. Sim, na tua barba. Palavra áspera, como a princípio era ela própria, machucando meu rosto quando nossos lábios se encontravam naqueles primeiros beijos apaixonados. Até então, nada sabíamos sobre o nosso futuro, e cada beijo poderia ser o último. E era com esse desespero emocionado de “última chance” que nos beijávamos, e a tua barba por fazer, áspera, dura, penetrante, riscava minha pele, traçando as primeiras linhas da nossa história.

Mas não era nossa última chance. E com a sua barba cresceu também o nosso carinho mútuo. A aspereza inicial deu lugar à suavidade do toque da pele que hoje eu acaricio com todo o afeto do mundo. Tua barba é a moldura perfeita dos lábios que tanto desejo beijar. E quando o faço, de olhos fechados, sentindo que posso levitar a qualquer momento, perdida no infinito do nosso bem-querer, é nela que toco para ter certeza de que sim, é verdade, estamos juntos, unidos por um fio – por todos os fios que emolduram o sorriso mais charmoso entre os sorrisos mais charmosos.

Assim, enquanto os outros amores são contados por dias, meses e anos, o nosso será contado pela sua barba: no nosso primeiro beijo ela estava por fazer, no primeiro “eu te amo”, seu cavanhaque estava perfeito. Naquela viagem apareceu o primeiro fio branco!

Quem sabe estaremos juntos até que ela se torne totalmente grisalha, depois branquinha? E, como faço hoje, será ao tocar nela, ao senti-la na minha pele, que todos os dias eu pensarei, feliz: é real!


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#RLL - As relações perigosas

>> segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Resenha Literária Livre

As relações perigosas
Choderlos de Laclos

Carta 81,
DA Marquesa de Merteuil
AO Visconde de Valmont

[...] Para vocês, homens, as derrotas não passam de vitórias a menos. Nesse jogo tão desigual, nossa sorte está em não perder, enquanto para vocês o azar está em não ganhar. [...] Ah, guarde seus conselhos para essas mulheres delirantes, que se dizem mulheres de sentimentos, cuja imaginação exaltada inclina a pensar que a natureza lhes pôs os sentidos na cabeça; que, nunca tendo refletido, confundem constantemente o amor com o amante;  que, em sua louca ilusão, acreditam que este com quem buscaram o prazer será seu único depositário; e, autênticas superticiosas, nutrem pelo sacerdote o respeito e a fé devidos à divindade.
Desconfie igualmente daquelas que, mais presumidas que prudentes, não sabem, se necessário, consentir em serem deixadas.
Tome tento sobretudo com essas mulheres ativas em sua ociosidade, que vocês denonominam sensíveis, de quem o amor se apodera com tanta força e facilidade, que sentem a necessidade de continuar envolvidas com ele, mesmo que não o desfrutem; e que, entregando-se sem reservas à fermentação de suas idéias, geram com elas cartas tão doces, e tão perigosas de escrever; e não temem em confiar essas provas de sua fraqueza àquele que as suscita: imprudentes que, em seu atual amante, não sabem enxergar seu futuro inimigo.
Mas o que tenho eu em comum com essas mulheres irrefletidas? Quando foi que me viu apartar-me das regras que me impus e faltar a meus princípios? Digo meus princípios, e o faço de propósito, pois não são, como os das outras mulheres, nascidos ao acaso, aceitos sem reparo e seguidos por hábito: são fruto de minhas profundas reflexões; eu os criei, e posso dizer que sigo minha obra. [...]
Mas imaginar que depois de tanto empenho não vá colher os frutos, que depois de um árduo esforço para me alçar acima das outras mulheres eu consinta em rastejar, como elas, entre a imprudência e a covardia, e que, sobretudo eu possa temer um homem a ponto de ver na fuga minha única salvação? Não, visconde, jamais. Quanto a Preván, quero tê-lo, e terei; ele quer contar, e não contará: aí tem, em duas palavras, nosso romance. Adeus.
De..., neste 20 de setembro de 17**.
Nessa carta (leia em voz alta, sério!), A marquesa de Merteuil explica pro seu caro Visconde o quanto ela deu duro (com duplo sentido, por favor), pra conseguir, ao mesmo tempo, ser uma dama admirada pela sua virtude na sociedade, e pegar todos os conquistadores da corte, em off.
Vocês devem imaginar que, naquela Paris do século dezoito, os aritoscratas não tinham muito o que fazer. A Marquesa de Merteiul e o Visconde de Valmont eram desses, e passavam seu tempo ocioso entretidos com manipulações e conquistas. As relações perigosas é uma compilação de cartas que narram os bastidores de uma sociedade hipócrita e vaidosa. A Marquesa e o Visconde são os principais "conspiradores", que, com mentiras, intrigas e uma boa dose de maledicência  dispõem da vida daqueles que querem conquistar ou de quem querem se vingar.

Intriga, sedução, mentiras e sexo proibido: Já dá pra saber porque esse livro é sucesso até hoje. Pra você, amiga leitora de 50 tons de cinza, eu prometo que esse livro de mais de três séculos, e seu Visconde, conseguem ser muito mais excitantes do que qualquer Grey milionário por aí.

A revolução (ou maldade, como queiram) da marquesa, é conseguir usar a dissimulação a favor dela. Usar da sua inteligência e da sua habilidade com as palavras pra conseguir conquistar quem quisesse, e manter o prestígio de mulher virtuosa na sociedade. Entre o amor que se rende e o poder que domina, ela escolheu dominar. Ficam as lições (literárias apenas, claro) do jogo de sedução: No amor, homem e mulher são oponentes, um querendo dominar o outro. A vitória da mulher está em não se render, ou em se render e não deixar que ele conte pra ninguém! O homem vence sempre, rs. Mas quanto maior era a fama de virtuosa da mulher antes, maiores os louros da vitória dele. A conquista que realmente tem valor é aquela em que o outro se rende espontaneamente - sem que seja usada força no caso do homem, chantagem no caso da mulher. Para a mulher, todas as outras são rivais, e roubar o homem da coleguinha, principalmente se ele dizia estar apaixonado por ela, conta mais pontos.

Apesar de tudo, o livro, moralista, reserva um final trágico a uma das minhas personagens femininas preferidas (sim, ela é vaidosa, arrogante, falsa e má, mas que mulher inteligente! Que talento com as palavras!). Vítima da sua vaidade e dos seus caprichos, a marquesa só errou ao se indispor com a única pessoa que poderia denunciá-la, se não tivesse mais nada a perder: o Visconde. Antes disso, porém, as cartas são uma verdadeira escola pra qualquer mulher que queira aprender a usar a inteligência para ser manipuladora, dominadora e dissimulada (ok, esqueçam, isso não é um conselho! Juro!)

Séculos depois, o desafio pra nós, mulheres, é ainda esse: merecermos o respeito da sociedade por quem realmente somos e não por quem parecemos ser. Não sermos julgadas por nossa conduta sexual, não sermos didividas entre "Sandys" e "devassas", entre "virtuosas" e "desfrutáveis", "direitas" e "perdidas", entre "pra casar" e "pra comer", "difíceis" e "fáceis".

Ainda é o homem que sai ganhando de qualquer jeito no jogo da sedução - porque mesmo quando ganha, a mulher que se vangloria das suas conquistas amorosas ou sexuais (coisa que qualquer homem faz tranquilamente) - é vista como vulgar, biscate, vadia etc.
Às que não querem recorrer à dissimulação (como a Marquesa) fazendo a linha "dama na sociedade, puta na cama" (comunidade do orkut, lembram?) resta a alternativa de mandar essa sociedade tão hipócrita quanto a parisiense do século dezoito à puta que pariu e seguirem suas vidas em paz sabendo que a medida do seu caráter não é proporcional ao seu número de parceiros sexuais.

Fora essa pequena digressão sociológica, que não vem muito ao caso, fica a indicação literária de um livro muito gostoso de ler - que ainda excita a curiosidade de se estar lendo uma suposta correspondência secreta, quase a mesma emoção de ler aquele histórico de msn, facechat ou whats app que encontramos aberto ao acaso.

Indico também o filme Ligações perigosas, que tem uma das melhores cenas de término ever, baseada nessa carta do livro:

(Carta 141)
Tudo acaba por nos cansar, meu anjo, é esa uma lei da natureza, não é culpa minha. Portanto, se eu hoje me cansei de uma aventura que me envolveu por inteiro durante quatro penosos meses, não é culpa minha. Se, por exemplo, tive tanto amor quanto você teve virtude, o que já é dizer muito, não será surpresa que aquele termine ao mesmo tempo que esta. Não é culpa minha. Decorre daí que eu a tenha traído, de uns tempos para cá; mas também, de certa forma, seu carinho impiedoso obrigou-me a isso! Não é culpa minha. Bem vejo que é esta uma bela ocasião para acusar-me de perjúrio, mas se a natureza concedeu aos homens somente a constância, ao passo que deu às mulheres a obstinação, não é culpa minha.Vá por mim, escolha outro amante, assim como eu escolhi outra. É esse um bom, um excelente conselho; se julgar que é mau, não é culpa minha. Adeus, meu anjo, eu a possuí com prazer, e deixo-a sem pesar. Talvez ainda volte para você. Assim gira o mundo. Não é culpa minha. 

Tem coisa mais excitante que maldade com astúcia e inteligência? (na literatura, claro!)
Tem não, gente, tem não! Leiam!

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Não existe amor em BSB

>> sexta-feira, 4 de janeiro de 2013


(Primeiro de uma série sobre o desamor na capital)


Na cidade das asas e dos eixos, o amor não encontra seu caminho. Sempre pega o eixinho L quando na verdade deveria ter ido pelo W. Depois de entrar nas quadras, não entende a disposição teoricamente alfabética dos blocos. O amor é sinuoso, muito mais afeito a esquinas e à poesia e ao heroísmo nostálgico dos nomes das ruas. Não entende o plano cartesiano. Deve ser por isso que não existe amor em BSB. 

Não existe amor em BSB. 

Essa cidade foi construída sobre os escombros de famílias desfeitas. Quantas esposas aguardam até hoje o retorno de seus maridos que vieram para a construção da capital e nunca mais voltaram? Vieram, construíram a cidade, e junto com ela, uma nova família. E ficaram, e foram ficando. Não seguiram o plano piloto: o de regressar. Em torno da ilha de prosperidade que prometia ser a nova capital, aglomeraram-se em núcleos de candangos, em terras de bandeirantes. E ficaram. 

Na cidade planejada o amor inesperado nunca vai acontecer. Há algo no mármore, algo no concreto, há algo na alma embotada dessa metrópole poeirenta que impede que o amor floresça. 

Nessa cidade, só as cigarras amam, e só uma vez a cada ano. E quando seus moradores, irritados, reclamam do barulho desse amor, não é exatamente do barulho que reclamam: clamam por seus próprios amores que, silenciosos, pereceram sufocados pelo pó da estação seca, e que nunca hão de ver e sentir a primavera e a chuva que ruidosamente o amor das cigarras anuncia.


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