do risco de se sonhar errado (crônicadeviagem)

>> segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

João Lucas,

Se dependesse de mim estaríamos, sim, trocando longas cartas que cruzariam o Atlântico, escritas a pena e em papel timbrado e selado com nossos brasões pessoais! Uma parte de mim ainda vive no século em que se fazia isso, e você sabe. Mas me contento com esses emails. Assim você pensa em mim enquanto os escreve, depois pensa na minha resposta, depois lê a resposta e começa a pensar na sua... e então estamos ligados, não só pelas palavras que trocamos, mas por esse pensamento contínuo que é mais eficiente que qualquer transmissão de dados!

Acho que sua história acabou como aquelas flores sim, mas não por ser sem vida e sem perfume, antes por ser perene: A garota da catedral não vai esquecer do rapaz simpático que lhe entregou as flores, enquanto elas durarem, ou seja, por muito tempo ainda. As flores do cerrado, como seus amores, podem ser, sim, secas: mas não morrem.

Mas acho que você nem foi muito stalker.  Como prometi, vou te contar as histórias da - das minhas viagens, mas esse seu momento psicopata me lembrou do meu psicopata favorito.

No último Natal que passei aí com minha família, me lembro bem: faltavam dez minutos para que o relógio marcasse onze da noite. Era véspera de Natal, e meu telefone tocou. O número era desconhecido, antecedido pelo código que indicava uma ligação do Rio de Janeiro. Alô?, Alô, tá me ouvindo?, Oi... é você!. Era ele. Ele desejava um feliz natal para "sua" moreninha. 

Tanto tempo depois, e ele ligou de novo! 

Saquarema, 2007
Cinco anos antes, nas férias de verão, viajei com minha família pr'aquela praia que vocês que sabem  surfar adoram. Sentia o sal do mar, ouvia o barulho das ondas, olhava o azul do céu, e me sentia plenamente feliz. Celebrava ali, com a família e a natureza, a minha aprovação em um concorrido vestibular, da qual tive notícia dias antes. Uma nova vida pela frente me esperava, e começava ali, abençoada pelo vai-e-vem das ondas.
Ouvir por perto o sotaque característico – e, aos meus ouvidos, sempre irritante –  do lugar me fez parar de sonhar com a minha atraente vida futura e desviar o olhar para o jovem que se aproximava e dizia algo aos meus irmãos, que brincavam comigo no mar.

“Olha, você tem que fazer assim, se não a onda te leva pra praia”. Ele falava com meu irmão mais novo, que desajeitadamente tentava “pegar jacarezinho”.

Horas depois, naquele mesmo dia, eu esperava no shopping da cidade reencontrar o surfista da praia. Pensava na aventura que contaria ao voltar pra minha cidade: havia conhecido um surfista na praia e marcara um encontro! Um amor de verão! Ótimo jeito de começar minha vida nova!

Ainda estava perdida nesses pensamentos quando ele chegou. Ele, dois ou três anos mais velho que eu, morava na capital do estado, mas sempre passava as férias na casa de verão que a sua família tinha naquele pequeno paraíso para surfistas profissionais e amadores. Naquela manhã havia ido à praia sozinho, e sua avermelhada pelo sol, que contrastava com o intenso azul de seus olhos, indicava que fazia isso todas as manhãs.


Ali estávamos, nós dois, depois de um encontro fortuito na praia, e dele ter reunido toda sua coragem para me chamar pra sair, como me contou mais tarde. Saímos, pois, e sob o entardecer alaranjado conversamos a mais não poder. Eu, radiante com os dias passados no litoral e com a expectativa da vida nova que teria na faculdade, experimentava o sabor da aventura de meu primeiro amor de verão digno desse nome. Ele, rendido a um singular encantamento, admirava a vivacidade com que eu lhe contava sua história e seus sonhos.

Agora, recordando aqueles dois dias, não sou capaz de precisar em qual momento a excitante aventura amorosa de verão começou a ser não tão excitante e menos ainda amorosa. Lembro-me somente que, a certa altura, quis correr para longe ao ouvi-lo falar das coisas maravilhosas que nós dois faríamos se eu não tivesse que retornar à minha cidade no dia seguinte:

“Se você ficasse, eu faria um jantar pra você, nós jantaríamos à luz de velas... decoraria a mesa com flores... faria um carinho nos seu rosto e beijaria seus lábios suaves... ao som de violinos... e na manhã seguinte eu te prepararia o café com tudo o que você mais gosta... e de tarde a gente passearia pela praia, faria um piquenique no parque... e eu acariciaria seus cabelos... assim...”

“Graças a deus que vou embora amanhã”,pensei. Mas o que eu disse foi “é uma pena que eu tenha que ir, né?” E a essa seguiram-se mais descrições melosas e ricamente adornadas de felicidade da parte dele, o que só aumentou a minha sensação de náusea e uma estranha e inesperada certeza de que eu havia sonhado a vida toda com um homem me dizendo aquilo – e sonhei a vida toda errado!

Naquele momento descobria que essas coisas propagadas como românticas não tinham nenhum valor se não fossem feitas com a pessoa certa. Descobria ali que o romance não está nas velas, nem no perfume das flores, ou nos doces acordes dos violinos: mas na entorpecimento provocado pela paixão. Sem paixão aquilo tudo parecia apenas um pouco ridículo e insuportavelmente sufocante.

Um pouco ridículo e insuportavelmente sufocante ele pareceu no dia seguinte, quando, num ato de amor desmedido, atravessou a cidade de bicicleta para se despedir (outra vez!) antes do primeiro raiar do sol.
Feita a última e dramática despedida na porta do meu hotel, voltei para a minha cidade, ainda intrigada com o fato de o amante dos meus sonhos ter se tornado, ao materializar-se na vida real, tão maçante e repetitivo.

Cinco anos depois, eu ainda não sei o porquê de, o que para mim foi uma aventura de dois ou três dias, ter sido provavelmente a grande história de amor da vida dele. Desde aquele verão, meu telefone recebe uma ligação do Rio de Janeiro no meu aniversário e nas vésperas de Natal e Ano-novo. E eu ainda pode sentir, na voz emocionada no outro lado da linha, o mesmo tom sonhador que, ao entardecer na praia, me prometeu a vida mais romântica que eu jamais teria.

Mas não me recusei a atendê-lo, não me recusei a encontrá-lo quando ele visitou minha cidade e me quis ver. Minha condescendente consciência enxerga nesse meu ato uma grande generosidade ao alimentar as fantasias amorosas de alguém que aparentemente só tem isso – fantasias amorosas. Mas um olhar mais atento e menos complacente dirá, com razão, que a mim pouco me custam alguns minutos de atenção em troca do grande afago no ego que é saber-me inspiradora de uma paixão à distância que já dura cinco anos.

Talvez um dia, numa dessas ligações, quando eu voltar pra casa, tenha a coragem e a honestidade de dizer que acho isso loucura – amar uma pessoa com quem se esteve por três dias, e que nunca, em hipótese alguma, jamais corresponderá a esse amor – e irei partir, ao mesmo tempo, o coração do jovem enamorado e o espelho de minha vaidade.

Mas, por enquanto, deixo essas confidências só para você, João. Um dia publicaremos nossa correspondência, e tanto meu stalker carioca quando a sua misteriosa mineira saberão os bastidores das histórias das quais foram protagonistas. Um dia.

Continue me contando as histórias de desamor da nossa cidade. Troco suas crônicas de além-mar pelas minhas efêmeras aventuras em viagem, e assim vamos construindo esse mosaico de memórias compartilhadas, esperando pelo nosso reencontro, que se você cumprir sua promessa de vir me visitar, não demorará muito.

Com saudade e afeto,
Alice

1 comentários:

Clara 15 de janeiro de 2013 às 11:42  

"...uma estranha e inesperada certeza de que eu havia sonhado a vida toda com um homem me dizendo aquilo – e sonhei a vida toda errado!"
HAHAH Muito bom!
psicopatas em potencial na cola, quem não tem um?

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