Bafafá Linguístico

>> sexta-feira, 20 de maio de 2011

 A pedido da amiga @VampiraPandini.

Que as pessoas sejam contra os princípios da sociolingística, tudo bem, é um direito. Mas que critiquem sem saber quais são esses princípios, é pura e simples ignorância, potencializada pela preguiça de pesquisar. No meio de todo esse falatório, o que mais me impressiona é o fato de que as respostas e críticas dos mais variados especialistas são feitas em cima de afirmações falsas ou exageradas, como no diálogo imaginado:
- O Sol é amarelo.
- Mas é um absurdo que o sol seja azul!
 -E não é, é amarelo.
- Mas ele não pode ser azul!

São algumas dessas afirmações malucas que eu destaco agora.

1 – “O livro didático estimula CRIANÇAS a falar errado” – Mentira! – O livro em questão, “por uma vida melhor”, é usado nas aulas de português da EJA.
EJA é a sigla de Educação de Jovens e Adultos, o antigo Supletivo. Você sabe quem são as pessoas matriculadas na EJA? Com certeza não são crianças. A EJA é a alternativa pra dona de casa que não teve oportunidade de concluir o ensino médio ou fundamental porque estava ocupada cuidando de filho e marido, ou pra doméstica que engana os patrões dizendo que sabe ler, mas sabe a diferença entre uma extrato de tomate e tempero só por causa do desenho e da cor da embalagem. É pro rapaz de 18 anos que teve que abandonar a escola porque precisou trabalhar. É pro pedreiro que precisa deixar de ser analfabeto funcional pra não perder o emprego pra alguém mais qualificado, ou que quer poder escrever um bilhete pro filho. É também praquele carinha e pra mocinha que não tiveram vergonha na cara pra estudar no tempo recomendado, mas que, mesmo assim, merecem uma segunda chance. A EJA é isso: uma chance, talvez a primeira chance de muitos, de conseguir alguma mobilidade social – de subir da classe iletrada pra classe letrada.
A quem interessa que os alunos desistam dessa nova chance?A quem incomoda que as sras e sres deixem de ficar em casa à noite vendo televisão pra ir pra escola, mesmo depois de um dia de trabalho?

2. O livro didático ENSINA a falar errado” - Mentira!. O livro AUTORIZA e LEGITIMA uma fala que o aluno já pratica, uma língua que o aluno já sabe e que não, não é errada no contexto dele. “Claro que você pode falar os livro” O aluno já fala assim, ninguém vai pra escola APRENDER a variante popular da língua portuguesa. Uma das coisas mais difíceis no ensino dessa disciplina é CONVENCER o aluno de que ele já fala português. Trazer a variante dele pro livro didático – numa cultura como a nossa em que “vale mais o que tá escrito” –, é valorizar a língua que o aluno já sabe, é estabelecer uma ligação entre a língua falada e a língua sistematizada do ensino. Essa aproximação, ao contrário do que se fala, torna a aprendizagem da norma padrão MAIS FÁCIL, pois permite uma freqüente comparação, e dá pro aluno confiança, pra que ele NÃO DESISTA.

3. “A escola vai parar de ensinar gramática” MENTIRA. E essa é uma mentira das grandes! Primeiro porque não existe só UMA gramática – ela pode ser normativa ou descritiva. Segundo, porque o objetivo da abordagem sociolingüística na escola não é fazer com que o aluno rejeite as regras da gramática normativa e, sim, com que ele domine essas regras e tenha a liberdade de usá-las quando achar que deve. Novamente: valorizar em sala de aula a variante do aluno não é um OBJETIVO, não é um fim: é um ponto de partida, é um “começo de conversa”. O QUE DIFERECIA SOCIALMENTE OS FALANTES É A QUANTIDADE DE VARIANTES QUE ELES DOMINAM. E o domínio da norma padrão, hoje, só é dado pela escola. Mas o domínio das variantes que “não tem concordância”, a gente aprende em casa, na rua, no dia-a-dia. E você, meu amigo graduado, também fala “os livro”. A diferença é que, quando for preciso, você vai saber falar TAMBÉM “os livros”.

4. Estimular a variação vai acabar com a unidade da língua. Mentira!. Leva anos, séculos, para que as variantes orais tenham reflexo na escrita. A língua escrita é mais rígida, exige, entre outras coisas, as concordâncias (por enquanto) e todos os esses em seus lugares. Mas a oralidade é dinâmica, sempre foi, essa é sua característica – ou você acha mesmo que fala o mesmo português falado no século XIX? Embora os textos do século XIX possam ser lidos e compreendidos por nós tranquilamente. Querer segurar esse movimento em nome de uma “unidade nacional” é inútil. Para que nós, brasileiros deixássemos de nos entender, seriam necessárias barreiras físicas entre uma região e outra, o fim das viagens interestaduais e muito, muito tempo. A função de “preservar” a língua é da escrita. A oralidade está aí para renová-la, transformá-la, experimentá-la, e, o que “pegar” de verdade, entra mais tarde pra escrita e se cristaliza.

 ****

Sinta-se à vontade para defender que o aluno não deve se sentir confortável na sala de aula, que deve existir uma barreira intransponível entre aluno e professor, que o aluno tem que achar mesmo que não fala português, que a escola tem mesmo que  voltar à palmatória. Eu vou entender, mesmo te achando um reacionário babaca.  Mas assuma esse ponto de vista mesquinho e classista, e não tente mascará-lo com um verniz de preocupação com o futuro da educação das crianças desse país. 

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