coerente contradição

>> terça-feira, 3 de maio de 2011

Sou dessas que classifica os outros à primeira vista e a partir dessa classificação adivinha gostos, decisões futuras e traumas passados– e acerto muitas vezes. Culpa do hábito de ler romances e ver novelas, analiso as pessoas como se fossem personagens.

Mas os problemas dessa relação direta entre ficção e realidade aparecem na definição de mim mesma. Como assim eu sou uma ultrajovem revolucionária mas não aguento mais o discurso pseudo-marxista da faculdade e não vejo mal nenhum em dar um pulo em Miami pra fazer umas comprinhas? Como assim eu apoio a luta pela igualdade de gênero e liberação da mulher, mas faço sacrifícios de vaidade pra receber um elogio masculino? Como assim eu vou ver a Orquestra Sinfônica escutando funk no caminho?

Falha de caráter? Falta de personalidade? Vai saber. A resposta consoladora que eu encontrei pra esses impulsos tão conflitantes é que, quem diria, eu não sou um personagem! Sou vários. Só que, diferente dos romances, onde cada um desses personagens tem sua cena, seu palco – em mim, somos todos um, encenando a vida real ao mesmo tempo, com falas não muito claramente separadas. E foi aí que eu, tão amiga das definições, tão apegada às coisas práticas e objetivas, tão sedenta de respostas e explicações, tive que aceitar que é isso mesmo, que não tem pra onde correr: somos seres contraditórios.

Essa resposta fácil, desculpa de quem não quer explicar o que não sabe, a cada dia se impõe mais como sendo a que tá valendo mesmo: a contradição é a essência humana.
Mas longe de solucionar, essa resposta trouxe mais perguntas! Se somos mesmo contraditórios pra que me cobraram por tanto tempo coerência, lógica, fidelidade, constância? Contradição quer dizer que tudo pode? Que tudo vale? Que se hoje sou estrela amanhã já se apagou? Se hoje te odeio amanhã lhe tenho amor? É bagunçado mesmo e a responsabilidade que se dane?

Não vejo dessa forma. Ainda não consegui pegar muito bem o que essa tal de contradição é e como ela afeta essa necessidade de ordenamento e etiquetamento que eu tenho das coisas. Sei que é fruto do cotidiano, do dia-a-dia, das pequenas decisões diárias, dessas coisas miúdas de que é feita a rotina e a vida. É nesse cotidiano que as grandes contradições de mostram, nesse desgaste da convivência que as certezas falham  e os personagens embaralham suas falas. 

Deve ser por causa desse caos que os homens fugiram para a  ficção – ela exige uma verossimilhança, uma coerência interna que a vida não tem, uma fuga pra um mundo com regras – regras criadas por um autor-ditador, é verdade, mas, ainda assim, regras.

Foi com essas reflexões também que eu entendi – FINALMENTE! – a base da dialética de que tanto falam durante o curso de Letras – avançar e retroceder – perguntar, questionar, avançar com cautela e  com alguma segurança, desconfiando do que é óbvio e das respostas fáceis. O segredo da crítica literária é também a grande dica pra vida: pra entender é preciso duvidar, questionar. Enxergar a contradição, aceitá-la sem juízo de valor: quanto mais contraditório, mais humano, mais real, mais verdadeiro.

Debaixo do manto protetor e conciliador da contradição, me dou o direito de escrever sobre o que eu quiser, desde as grandes questões da humanidade até o capítulo da novela das seis de ontem. Sobre o que me encanta mesmo escrever é sobre o dia-a-dia do cotidiano diário e isso me angustiava, porque aspirações   à grandeza de uma alma criadora não deixavam eu me ocupar com essas miudezas. Mas me convenço mais e mais de que em cada uma dessas miudezas há uma chave pros grandes problemas da humanidade.

Sou dessas que classifica os outros à primeira vista e a partir dessa classificação adivinha gostos, decisões futuras e traumas passados – e acerto muitas vezes.


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